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terça-feira, 19 de junho de 2018

Travessia da Serra Fina em 1 dia

Serra Fina é Serra Fina.
Apesar de ser uma frase simples e, aparentemente, boba, ela é cheia de significado.
Quem conhece a região sabe bem o que estou falando. Localizada na região das Terras Altas da Mantiqueira, próxima ao encontro entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro (um cantinho abençoado que também conta com o Parque Nacional do Itatiaia e que tem vista para o Parque Nacional da Serra da Bocaina, Marins-Itaguaré e mesmo o Parque Estadual da Serra do Papagaio), a Serra Fina é o paraíso na Terra para trekkeiros, montanheiros e amantes da natureza em geral.

Apesar de já termos ido um bocado de vezes para a região, nunca tivemos a oportunidade de pegar o tempo verdadeiramente bom, com visual desimpedido em 360º. Então resolvemos ir pra lá em junho, na temporada de montanha, tradicionalmente marcada pela estiagem, na esperança de encontrar céu azul e paisagens de tirar o fôlego até onde a vista alcança.

O programado era aproveitar o feriado de Corpus Christi para fazermos um treinão saindo do centro de Passa Quatro, subindo pela Toca do Lobo, descendo pelo Paiolinho (a chamada "meia travessia") e retornando ao centro da cidade.

Mas aí veio a greve dos caminhoneiros e a crise de abastecimento, ficamos com receio de não termos combustível para voltar pra casa e abortamos a viagem. Vi fotos de gente que esteve na Serra Fina naquele feriado e quase chorei... o tempo estava perfeito!

Pouco tempo após abortarmos o plano, surgiu a oportunidade de acompanharmos os amigos André e Lih e mais uma trupe de corredores da Lobo Adventure em um treino preparatório para a Ultra dos Perdidos (Paraná), justamente na Serra Fina.

Apesar de estarmos já na metade de junho, o clima ainda está longe de ser o de estiagem e a previsão para o final de semana não era das mais animadoras.

Ainda assim, lá fomos nós.

Chegamos em Passa Quatro na sexta-feira, às 22h30. Jantamos, fomos para a pousada às 23h30, fizemos os últimos ajustes nas mochilas, banho tomado, dentinhos escovados e quando fui colocar o celular para despertar ele me disse que eu tinha 1h47min até o despertador tocar. Apesar disso, consegui dormir bem por pelo menos 1h20 e acordei me sentindo descansado e preparado.

Comida para pelo menos 25h de atividade
Carregando a casa nas costas (segurança em primeiro lugar)
Tomamos o café, tiramos uma foto na porta do hostel da Carioca e partimos - em 8 desmiolados - com destino à Toca do Lobo, onde encontraríamos os demais 5 membros do grupo para iniciarmos a travessia da Serra Fina em um dia.


Do centro até a Toca do Lobo o tempo passou bem rápido e a 'corrida' fluiu bem - o que foi ótimo, já que esse era o único trecho verdadeiramente corrível de todo o trajeto!

Os m0l3k3 d01d0!


A cara de quem achou que daqui pra cima ia ser só tempo limpo e sol!
Olha o único pedaço de céu azul do dia!




Reunimos o time na Toca do Lobo, tiramos uma foto e nos dirigimos para o Capim Amarelo, o primeiro cume significativo do dia, onde cheguei muito bem e animado, baixando meu melhor tempo de subida em pelo menos meia hora - sem forçar e parando para tirar fotos no caminho.



No Capim, enquanto encontrava outros amigos e aguardava o grupo se reunir novamente, tive a ideia de fazer esse videozinho do shit tube não convencional.

Até o Capim havia sido mamão com açúcar, a nutella da Serra Fina. Já tendo feito a travessia completa e a meia travessia antes, eu sabia que a brincadeira ia começar de verdade a partir de agora, mas não estava preocupado, pois as pernas estavam bastante frescas e a energia estava lá em cima - apesar da frustração de estarmos o tempo todo dentro da camada de nuvens.




Do Capim até a Pedra da Mina avançamos sem incidentes - e sem qualquer visibilidade além de 50 metros - e com bastante frio. Apesar de toda a névoa, conseguimos encontrar o caminho com tranquilidade e encontramos também o Paulinho Lamin no caminho, fazendo mais uma pernada no percurso da La Misión que irá ocorrer em agosto (ainda dá tempo de se inscrever!).



Não pergunte. Também não entendo.
Fizemos uma parada no cume da Pedra da Mina para uma refeição mais substancial (quem aí adivinha qual foi a minha refeição? 😂) mas o frio estava de doer. Meus pés perderam a sensibilidade por conta do frio e só fui voltar a senti-los meia hora mais tarde. Infelizmente a visibilidade era zero em todas as direções.




Em dia aberto, vocês não tem noção da vista que se tem daqui
Fiquei um pouco frustrado, pois desde o início da semana eu vinha contando as horas para poder botar os olhos no lindo Vale do Ruah... conforme iniciamos a descida, uma rajada de vento um pouco mais forte abriu uma brecha nas nuvens e me deixou contemplar o Vale por alguns instantes.









Alguns minutos depois foi a vez de tirar os olhos e colocar os pés no Ruah, que estava encharcado que só. Em compensação, ali estávamos protegidos do vento e deu até um semi-calorzinho gostoso!





Todo mundo se abasteceu de água para a segunda e mais dura parte da travessia, que estava para começar.

A energia continuava lá no alto, as pernas estavam muito bem e o frio estava bastante tolerável. Assim, tirando o fato de não termos lindas paisagens para olhar, tudo era alegria.

E então apareceu o maior e mais respeitável oponente na Serra Fina, o pouco-falado-mas-muito-temido bambu-do-capiroto. Ele já havia dado as caras antes, a partir do Maracanã, mas sempre de forma marota, quase lúdica, todo brincalhão, dando uma petelecada na sua orelha aqui, uma estilingada na canela ali, enroscando na sua mochila acolá e passando uma rasteira um pouco mais pra frente...

Mas do Vale do Ruah pra frente, meu amigo, o bambu perdeu a classe. Era necessário andar praticamente agachado e, ainda assim, não tinha como fugir das chicotadas. Hora atrás de hora, subida após subida, descida após descida. Frio, névoa, lama e bambuzada na orêia, frio, névoa, lama e bambuzada na fuça, num loop aparentemente infinito. A cada minuto era um novo 7x1.

Uns se deixaram afetar mais, outros menos, mas não dá pra negar que isso começou a minar nosso moral. E aí a noite começou a cair e a umidade a aumentar.

Pouquinho antes da noite cair, o sol resolveu aquecer nossos rostos e corações por uns 2 minutos. Foi demais! Deu até pra ver o PNI ao fundo!






Atingimos o Pico dos Três Estados já no escuro e focamos no próximo cume (teoricamente o mais tranquilo de todos até agora), o Alto dos Ivos. Acontece que a escuridão, somada com a vegetação bastante alta e a névoa tornaram o Alto dos Ivos em algo mais difícil do que eu me recordava (e escalaminhar aquele paredão no escuro foi um pouco assustador também!).


Apesar de tudo isso, eu continuava me divertindo bastante. O grupo todo tinha bastante senso de humor e as piadas rolavam sem freio.

Cadê o totem?

Achouuu
Como eu costumo dizer (mais pensar do que, efetivamente, dizer): o perrengue é inevitável. Mas o sofrimento não! Na hora que a cabeça começava a ficar negativa eu repetia meu novo mais mantra: "Embrace the Perrengue".

Tá frio? Tá. Tá molhado? Tá. Dá pra ver algo? Não.
Então tá rindo por quê? Porque a vida é muito louca!!!
Embrace the perrengue é muito mais do que apenas aceitar o perrengue. Não é uma atitude passiva. Pelo contrário, é uma atitude ativa! É admitir que vai ter perrengue, dar um abraço nesse feladap#ta e rir da sua própria desgraça.

Você já parou pra pensar que existem dois tipos (no mínimo) de diversão?
Tem o tipo 1, que é aquele genuíno, no qual você percebe que está se divertindo no exato momento em que realiza a atividade em questão.
E tem o tipo 2, que é aquele que exige um pouco mais de... de... maturidade? Reflexão? Falta de bom senso? Incoerência? É aquele em que você está sofrendo, mas sabe que por dentro - bem por dentro - é disso que você gosta. É aquele em que você somente vai perceber que se divertiu de verdade após ter terminado a atividade. É aquela sensação que você tem quando tira os tênis e vê que tem 4 bolhas novas, 2 unhas a menos, 3 calos, olha pro seu amigo ao lado e dá aquele sorrisão enquanto toma um gole de cerveja artesanal feita na Mantiqueira e, mesmo sem dizer uma palavra, vocês sabem que são uns fdp's sortudos que devem agradecer ao universo pela saúde e capacidade física de encarar - voluntariamente - uma jornada longa e sofrida e ainda conseguir rir. É aquela sensação tardia de realização, conquista e prazer.
Deu pra acompanhar essa viagem na maionese? Então voltemos ao treino.

Até o cume do Alto dos Ivos eu estava genuinamente me divertindo com o Tipo 1 de diversão.

No Alto dos Ivos fiz minha última refeição e, na minha memória e na das outras pessoas que já haviam feito a travessia antes, daqui pra frente seria mel na chupeta. Um pequeno trecho pedregoso e depois uma descida de inclinação moderada e totalmente corrível até chegar ao sítio do Pierre.

Acontece que não foi bem assim não. Quanto mais descíamos, mais escorregadio ficava, mais molhado estavam o chão e a vegetação e mais ferozes ficavam os bambus. Na altura do campeonato eu estava tão pistola que nem tentava mais desviar dos bambus, tentando levá-los no peito - o que, obviamente, não funcionava e só aumentava a dor e a raiva. kkkk


Demorou uma eternidade para chegarmos, finalmente, no trecho em que era possível correr, isto é, a reta final até a rodovia que sinaliza o fim oficial da travessia (mas não o fim da nossa jornada). Para nós o fim estava pouco mais de 2km adiante, no Hostel Picus, onde finalmente pudemos desligar os GPS's, trocar a roupa molhada, saborear uma IPA feita ali mesmo e trocar sorrisos amplos e olhares cansados, porém, felizes!

Foram quase 19 horas de atividade numa região linda e bruta, com um clima longe do ideal.

O clima poderia não estar perfeito para tirar fotos, mas para treinar o corpo e a mente eu não poderia ter escolhido outro tipo de clima. Ou seja, apesar de tudo, o dia foi perfeito!

Muitas pessoas poderão não entender o sentido de passar 19 horas andando no frio e na umidade, apanhando da vegetação, levando surra da montanha. Mas tudo bem... elas não precisam entender nada. A gente entende e isso basta.

Por fim, deixo aqui os meus mais sinceros agradecimentos ao André, Lih, Lourival, Victor, Vagner, Paulo, Leandro, Rafa, Robson, Ligia, Ricardo e Cris pela companhia e companheirismo ao longo de toda essa jornada, ouvindo minha tagarelice e minhas piadas ruins por longas horas, sem pressão por tempo, sem atritos. Que time! Foi um prazer me divertir com vocês - 85% Diversão Tipo 1 e 15% Diversão Tipo 2... um ótimo saldo! rs

7 comentários:

André Lima disse...

PERFEITO O RELATO!!! DIVERSÃO NO NÍVEL 1 SEMPRE!!!! A GENTE SOFRE E AINDA QUER VOLTAR!! PRECISAMOS SER ESTUDADOS!! KKKK...MUITO OBRIGADO PELA COMPANHIA DE SEMPRE!!!

P.C. Lago disse...

Perfeito, Gabriel! Texto maravilhoso! Me diverti muito, e aqui foi só do tipo 1! Você é um grande guru: Embrace the perrengue! Grande abraço.

Gabriel C. disse...

Chamem a NASA para nos estudar! É sério! kkkk
Um exemplo de alguém usando o Embrace the perrengue é você mesmo, PC. A cada tombo era uma risada! Nem aí pra nada! hahaha
Esse é o espírito!

Francisco Avelino disse...

#EmbraceThePerrengue

Queremos camiseta.

Gabriel C. disse...

Jovem Cidadão Francisco, compareça à S.S.O. para maiores detalhes!

piacere disse...

Primeiro relato que leio que afirma que a segunda parte é mais dura. O resto é tudo fake news! haha E a definição de bambus-do-capiroto é perfeita! Foi cada bambuzada na cara e tranco quando eu passava, mas a mochila enroscava. E MUITO respeito por vocês terem feito isso em um dia só, seus brutos!!

Gabriel C. disse...

Fake news é ótima! hahaha
Mas não é mesmo? Acho que a maioria das pessoas pensa só no ganho de elevação, que é bem mais acentuado na primeira metade. Mas a progressão é bem mais chata na segunda metade da travessia. Desde a primeira vez que pisei do Capim Amarelo pra frente que respeito muito os bambus. Já até sugeri mudarem o nome da região para Serra do Bambuzal Infernal, mas acho que afastaria os turistas. kkkkk
Mii, respeito eu tenho por quem faz essa pernada com a cargueira nas costas! Nem imagino como deve ser pra subir e descer essas pirambas com o centro de gravidade alterado!