O texto foi retirado de sua página no Facebook - a Corra por Dentro - e compilado aqui com sua permissão.
Aí vão suas palavras, fotos, vídeos e emoções. Enjoy:
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Vou tentar
lembrar tudo que aconteceu, na Ultra Fiord 2017 (terceira edição),
prova de 50km.
Como contém
muitos detalhes, o texto ficou grande e eu preferi dividir o relato em 4
etapas.
*
Começou antes de
sair do hotel.
A prova ocorreu numa
quinta-feira, deixei todos os itens prontos na quarta. Todos absolutamente
conferidos, todos os equipamentos, tudo que ia na mochila, tudo já
encaixado, tudo no seu lugar. Só faltava vestir os equipamentos e ir
para a prova.
Para quem estava na cidade de
Puerto Natales, que é onde eu fiquei, um ônibus
ficou agendado às 6:30 da manhã para levar os corredores até
o Hotel Rio Serrano, onde aconteceu a largada.
Então, na quinta meu relógio
despertou às 5:15 da manhã. Eu sempre gosto de acordar com pelo
menos uma hora de antecedência antes de sair para uma prova para
poder me arrumar com calma e não esquecer nada. Ir ao banheiro, tomar
algo de café da manhã, tomar água e sair para a prova sem desespero,
sem aflições, deixando a correria para quando for dada a largada.
Acordei, fui ao banheiro, escovei
meus dentes, me troquei, comecei a vestir os equipamentos. Alguns deles, por
conta da temperatura em São Paulo, eu só experimentei
na loja ou em casa e seria a primeira vez que correria com eles: blusas de
frio, luva térmica impermeável. Outros eu já tinha usado
muito: tênis de trilha, meias de trilha, relógio, bandana.
Havia também os que eu havia conseguido treinar algum dia como, por
exemplo, o anarok (uma blusa impermeável), aproveitei algum dia de chuva para
treinar com ele para ver se ele me impermeabilizava mesmo. Pus a minha mochila
e desci para a rua.
Tudo escuro, tudo fechado, ninguém
na rua. Eram 6:10 da manhã. O local onde o ônibus
esperaria ficava a 1,5km do hotel. Eu tinha duas opções, ir a pé
ou chamar um taxi. É possível ir a pé, mas como é um lugar que
eu não conheço fiquei receoso de me expor de
madrugada, sem contar que eu teria 50km pela frente e andar 1km a mais poderia
fazer alguma diferença.
“Ah, mas 1km a mais não
faz diferença”.
“Mas, e se fizesse”?
Então preferi não andar essa
distância até o ônibus.
O hotel em que eu estava era
pequeno e familiar. Não era desses em que a recepção
fica aberta 24 horas por dia. Haviam duas maneiras de acessar a recepção:
“Por dentro” do hotel sem sair para a rua, mas as
portas que atendiam a esta opção estavam todas fechadas.
“Por fora” do hotel, saindo para a rua por uma saída
de pedestres que ficava acessível para entrada e saída
a qualquer hora e acionando a campainha da recepção para que alguém me
atendesse.
Então só me restou uma alternativa. Saí
do hotel e apertei a campainha. Esperei para que alguém pudesse
ouvir, acordar, se levantar e me atender. Óbvio que essa estratégia
não
deu resultado. Um ou dois minutos depois apertei novamente. Deu para ouvir o
som lá dentro. Então a luz da recepção acendeu.
Do lado de dentro o proprietário
indagou quem era esforçando para olhar pelo vidro e identificar
quem estava do lado de fora.
“Oi, é o Francisco do 17. Eu preciso que o
senhor chame um táxi para mim. Eu vou até a corrida no centro”.
Ele abriu a porta e me mandou
entrar. Estava muito frio lá fora. Meu celular dizia 3 ou 4 graus. Há
quem dirá que não estava tão frio, rs, mas para mim, devo admitir,
estava. Então entrei na recepção e expliquei onde iria e por que,
novamente. Então o Senhor Francisco fechou a porta da recepção
e disse:
“Vamos, te levo”.
Agradeci e pedi desculpas. Fomos
até o carro e começamos a viagem. Coloquei a mochila que
estava nas minhas costas entre as pernas. Olhei para o relógio
do carro, 6:26. É perto. Dá. Vai dar. Sim.
“Que horas tem que estar lá”?
“O ônibus sairá às 6:30”.
“6:27. Dá tempo. Tudo bem. É
perto”.
As ruas totalmente vazias, a
cidade totalmente escura, tudo obviamente fechado, carro nenhum na rua. Nenhum,
ninguém. Chegamos. O ponto de encontro era em frente ao Espaço
Ñandu,
uma loja que vende souvenir e alguns equipamentos para adeptos de trilhas ou
pessoas que fazem acampamentos. Tem muito esse tipo de pessoa por lá.
Quando desci do carro vi um ônibus
desses grandes, para 40 ou 50 pessoas e um outro menor, para cerca de 20
pessoas. Muitas pessoas do lado de fora. Corredores, com certeza. Até
porque, salvo corredores e motoristas de ônibus, apenas malucos estariam ali
naquela hora e temperatura.
Reconheci o Fernando Nazário.
Monstro. Gigante. Incrível. Usava uma jaqueta termoball e um
shortinho bem inacreditável para onde estávamos, eu não
queria nem imaginar para a neve. Ele já estava no ônibus, entrava
e saía, não entendi muito bem. O cumprimentei e
entrei no ônibus maior.
Quando entrei no ônibus,
vi vários corredores sentados na esquerda e na direta. Comecei a
olhar para eles e todos (9 de 10, quase todos) com os óculos na cabeça.
Só
aí
eu percebi que, de todos os equipamentos obrigatórios que a organização
havia exigido, de tudo que eu havia deixado pronto para carregar, de tudo que
eu vesti, eu havia esquecido de colocar os óculos. Haviam ficado no hotel, na mala
onde estavam todos os itens que agora estavam comigo. Eu vesti tudo que estava
na mala. Menos os óculos. Comecei a ficar preocupado.
Conferi o passaporte do corredor
(um pequeno documento que a organização desenvolveu, onde são
marcados os horários de passagem em todos os postos de controle (PC), se algum
posto estivesse faltando, o corredor era desclassificado) e o primeiro PC era
no hotel da largada. No passaporte, para este primeiro PC, estava escrito
exatamente assim:
“Checagem de equipamentos”.
Meu sangue gelou mais frio do que
a temperatura que estava lá fora. “Não é possível que tudo irá por água
abaixo agora, antes mesmo de eu ter a chance. Quer dizer, eu tive a chance, mas
eu falhei. Eu esqueci os óculos”.
Tudo isso durou um segundo na
minha cabeça quando entrei no ônibus. Continuei caminhando e procurando
um lugar. Várias pessoas em duplas. Encontrei um lugar mais ao fundo.
Tinha uma moça sozinha. Perguntei se poderia me sentar ao lado dela e ela
disse que tudo bem. Me sentei e ficamos todos esperando o ônibus
partir.
Uma pessoa da organização
da corrida entrou no ônibus e, do fundo até
a frente, começou a checar todos os corredores presentes. Para cada um
perguntava o nome e o número e anotava numa prancheta.
Identifiquei que a moça ao meu lado era mexicana porque o número
do peito do corredor traz uma pequena bandeira do país de origem.
Mayra era o nome dela.
Então partimos. Tudo ainda escuro. Vidros
embaçados. Saímos de Puerto Natales às
6:44.
Eu não consegui ou
não
quis dormir. Estava vestido com 3 camadas de blusas (segunda pele, flecce e
anarok) e sem as luvas. Pus a touca do anarok e estava com a bandana na cabeça.
Mantinha minhas mãos debaixo das minhas pernas para que aquecessem e de tempo em
tempo eu virava as mãos para que elas não
“dormissem”.
Tinha a preocupação de que, se elas dormissem, ao chegar ao Hotel Rio Serrano,
onde com certeza estaria mais frio do que onde eu estava, haveria alguma
dificuldade na circulação sanguínea das extremidades. Fechei meus olhos
tentando me manter o mais concentrado possível para, se eu conseguisse passar pelo
primeiro PC, correr tranquilamente.
Duas horas depois chegamos ao
hotel. Estava muito frio. Deu para ver ao entrarmos no terreno do hotel o vasto
campo gramado e congelado.
Desci do ônibus e entrei
no hotel. Queria aproveitar o tempo antes da largada do lado de fora para me
habituar ao frio, mas resolvi entrar para ir ao último banheiro ainda em ambiente
civilizado até o fim da prova, tirar uma das camadas de blusas e assinar o
passaporte do corredor.
No dia anterior, na quarta-feira,
os corredores haviam participado do congresso técnico da prova. O palestrante do
congresso foi o campeão da primeira edição da Ultra
Fiord, Fernando Nazário.
“É importante, apesar do frio, não
largar com todas as camadas. Quando largamos, estamos parados e parado a roupa
não
aquece, mas quando começamos a correr, a roupa aquece muito e aí
percebemos que temos que tirar uma camada. Comece a prova de anarok e segunda
pele e NUNCA tire a segunda pele”.
A segunda pele é
uma camisa (ou calça) bem fina e bem grudada ao corpo.
Parecida com a que vemos com jogadores de futebol depois que eles tiram a
camisa do time. Só que essa aqui era uma de manga longa e talvez seja um pouco
mais preparada para o frio do que aquela do jogo de futebol.
Quando entrei no hotel, reparei
uma fila de corredores. Era alguém da organização fazendo a
checagem. Pensei “é aqui, não pode acabar aqui. Que checagem de
equipamento será feita aqui? Teremos que tirar todos os itens da mochila”?
Então a moça pediu meu passaporte. Entreguei e ela
simplesmente pegou meu número, anotou o horário
em que cheguei, assinou o nome dela e não fez mais nada.
Eu estava na prova.
Fui ao banheiro e na volta parei
num sofá no lob do hotel para tirar o flecce, a camada intermediária
e térmica. Para tirar o flecce eu tirei a mochila, coloquei a mochila
no sofá, tirei o anarok, tirei o flecce.
Nesse momento, o diretor da prova
entrou no saguão.
“3 minutos para a largada”
Olhei no meu relógio,
8:47.
Então, rapidamente dobrei e enrolei o
flecce, vesti o anarok novamente, sentei no sofá e encaixei o flecce na mochila no lugar
que havia planejado anteriormente. Minhas luvas também estavam na
mochila. Preferi largar sem luvas. Estava mais frio do que quando a viagem de ônibus
começou, mas eu queria largar sem luvas para que, no momento em que
eu estivesse num lugar mais frio, as luvas tivessem uma ação
mais eficaz. Acreditei que, colocar a luva no hotel, manteria minha mão
aquecida, mas poderia demonstrar menor eficiência no meio da neve. Não
sei exatamente quando, mas construí essa lógica na minha cabeça
e assim fui. Passar um pouco de frio naquele momento para que a luva fizesse
bastante efeito quando eu realmente precisasse dela, e não o contrário.
E lá veio o diretor.
“2 minutos para a largada”.
E muito rápido. “1 minuto para a largada”.
Então saí. Muitos ainda se arrumando no hotel.
Uma moça fechando a bolsa de outra que derrubou a luva. Me abaixei,
peguei e entreguei a ela. Saí e lá fora, no mundo real, a temperatura
marcava -5° C.
Dava para ver o gramado geado (e
prateado) e o pórtico de largada. Eu iria correr 50k. Minha primeira
ultramaratona. A mais difícil de todas. Caramba.
A moça que conferiu
os passaportes estava lá fora perguntando “todo
mundo assinou”? Eu perguntei “é aquela assinatura que você
fez lá dentro”? Tirei meu passaporte para que ela
conferisse, mas estava tudo certo.
“30 segundos para a largada”.
Então todos foram para o pórtico.
Fiquei a cerca de 5 metros dele. Vi o Nazário bem debaixo do pórtico.
Esses caras vivem disso e segundos vencem as corridas.
O diretor começou
a contar.
“10 segundos. 9. 8”. E todos
juntos. “6. 5. 4. 3. 2. 1”.
Não me lembro se teve alguma buzina. Na
minha cabeça teve. Ou não teve. Talvez. Não sei.
Largamos. E eu corri.
NO COMEÇO
Não acelerei. Sei o meu ritmo. Conheço
meu ritmo. Treinei ele. Então eu corri.
Voando, lá na frente, o
Nazário. Eu não tinha nem 50 metros de prova e ele já
estava uns 200 metros à minha frente. O cara veio para ganhar.
Ele não veio fazer a primeira ultramaratona. Ele veio para ganhar
mais uma vez.
Durante uns 2 ou 3 kms corremos
nesse campo verde geado. Ou eu deveria dizer “campo prata”. Uma subida
leve ou descida leve. Na maioria plano.
Comecei a sentir minhas mãos
muito frias. Muito frias. Do tipo muito frias. E me veio a orientação
do Nazário no congresso:
“Não espere para ter certeza que aquele
frio, sede ou fome tem que ser atendido. Atenda quando perceber que o problema
existe. Sua vida pode depender disso”.
Comecei a tentar correr mexendo
os dedos. Abria e fechava as mãos, os dedos, o polegar, mas não
estava adiantando nada. Nada. Tive que pôr as luvas.
Eu estava num segundo grupo de
corredores. Nazário e mais um ou dois voando, atrás destes um
grupo à minha frente. E eu era parte desse segundo grupo. Grupos, em
corrida, são um perigo. Eles podem fazer você correr mais
do que você está preparado, porque você
tenta correr na velocidade do grupo e pode ser que isso te force mais e então
você acaba acelerando ou eles podem fazer você
correr mais lento do que está preparado, você percebe que
pode correr mais, mas o grupo está te segurando.
Tinha mais um grupo atrás
e minhas mãos estavam congelando. Eu teria que parar e pôr
as luvas.
Soltei os feches da mochila, saí
da trilha, tirei a mochila, joguei a mochila no chão, tirei as
luvas da mochila, joguei-as no chão, coloquei a mochila de volta, peguei
as luvas e voltei a correr. Colocar a primeira luva foi muito difícil.
Meus dedos estavam com as pontas ardendo muito pelo congelamento e eu não
tinha sensibilidade suficiente para mantê-los firmes enquanto colocava a luva.
Quando consegui manter os dedos firmes para colocar a primeira luva, me faltava
colocar a segunda. E agora a minha mão tinha movimento reduzido por conta da
luva que já havia colocado, mas consegui. Coloquei as duas luvas.
Olhei para trás
e só tinha uma pessoa atrás de mim. O tempo que eu perdi me deixou
em penúltimo.
Quando fui para essa prova, eu
tinha um desejo: eu queria não ser o último. Mentalmente, eu decidi recuperar
a posição em que eu estava. Sem exageros. Sem forçar
muito o meu ritmo, eu voltaria ao segundo grupo. Pouco a pouco, cheguei ao meu
grupo e continue a trilha.
Meu relógio marcou
5km. Ele vibra a cada 5km. 33 minutos. WOW. Muito bom. Quase tempo de asfalto.
Para mim. Para os meus tempos.
Chegamos à trilha e ela
estava bem fechada. Trilhas oferecem essa dificuldade. Uma fila se formou e
ficou difícil ultrapassar o corredor à frente. Às vezes, pisar fora da trilha era mais
lento e difícil do que pisar na trilha e eu fui seguindo aquela fila. Foi
quando o cadarço do meu pé esquerdo desamarrou.
Eu sempre dou um baita nó
para evitar que desamarre, mas foi inútil. Não sei. Talvez a ansiedade tenha me feito
amarrar mal o cadarço. Fato é que eu não conseguiria amarrar o cadarço
de luva.
Rapidamente, eu entendi o que eu
teria que fazer. Tirar as luvas, pisar fora da trilha, jogar as luvas no chão,
amarrar o cadarço, pegar as luvas, voltar para a trilha, calçar
as luvas. E foi exatamente o que eu fiz. Tudo muito rápido. Amarrei
o cadarço o mais firme que eu consegui com as mãos geladas.
Perdi um pouco o grupo, mas os encontrei novamente um bocadinho de trilha
depois.
Começou uma subida,
muito frio. Vento gelado. Não tenho muita técnica de
subida. Sou lento. Sinto minhas pernas pesadas. Corro onde consigo, mas em
subida eu admito andar sem constrangimentos. Isso é normal...
para pessoas normais como nós, não para os campeões... eles
sobem voando, eu não sei como fazer isso.
Olhando para trás,
a vista do vale onde fica o hotel é impressionante. Foi o meu primeiro
contato com a grandeza da Patagônia. Ainda consigo ver a cena na minha
cabeça.
Subi esse primeiro morro. Sabia
que era uma subida até o km 8, depois descia um pouco e subia
novamente até o ponto mais alto da prova, no km 13. Ficava a 865 metros
acima do nível do mar. Ali começava o trecho que meu treinador chamou de
“Zona
da Morte”.
Zona da Morte, porque no ano
anterior veio a falecer um mexicano durante a prova nessa região.
Quando cheguei ao km 9, pela
primeira vez na minha vida, eu vi neve. Tinha neve na trilha.
Na minha frente iam dois brasileiros
e quando eles viram a neve gritaram qualquer coisa, rs. Provavelmente, também
era a primeira neve deles. Então eles pararam para filmar e tirar
fotos. Eu só passei. Também era incrível para mim, mas eu sabia que ainda
teria muita neve, que não seriam só aqueles dois metros no meio da trilha.
Teríamos muito mais para nos encantar. E para correr.
Então fui embora, deixei os dois para trás
e continuei. Meio km a frente, mais neve. O mesmo tanto. Uma faixa sobre a
trilha. E ficou claro porque havia neve. Porque a temperatura não
conseguiu esquentar o suficiente para poder derretê-la. Tudo isso
para entender que estava frio ou que esteve mais frio durante a noite.
Em algum momento encontrei o
primeiro PC na prova. O rapaz pediu meu passaporte, anotou, assinou e me
devolveu. No PC havia barrinhas de chocolate com flocos de arroz, um pequeno
barril de água e outro de isotônico. Mais cedo, eu saí
do hotel com 750ml de água no reservatório da
mochila, um reservatório de 500ml de água e um
reservatório de 500ml vazio. Então eu reabasteci a água
de 500ml e o reservatório vazio eu abasteci com isotônico.
Saí com a garrafa vazia porque ouvi do meu
treinador (e no congresso no dia anterior) que seria possível
encher de água em qualquer rio do caminho. Todos eram extremamente puros.
Afinal de contas, o que polui é a civilização e ali não
havia esse tipo de perigo. Agora eu estava abastecido com água
e isotônico. Minha garrafa vazia ia funcionar melhor do que eu
planejei. Fui embora.
Um pouco mais à
frente encontrei uma clareira com um gramado. Quer dizer, imaginei que era um
gramado. Estava completamente coberto de neve. Quando pisei, descobri que não
era um gramado. Foi o meu primeiro contato com o charco.
Charco é uma vegetação
muito comum na região. É interessante. É fofo. Afunda.
Parece uma raiz com barro e areia, além de despertar muito ódio
no coração de cada corredor.
Essa clareira deveria ter uns 200
metros e eu corri o que consegui sobre o charco e, sem querer, por sorte, ou
chame como quiser, olhei para a esquerda e vi uma vista absurdamente linda. Um
lago enorme (ou era mar, não sei dizer). Uma montanha verde ao
fundo e o sol brilhando muito. A água refletia o sol. Parecia um rio de
ouro. Olhei uma ou duas vezes, sem parar de correr. Chegando ao final deste
trecho ouvi aqueles dois brasileiros que pararam na neve chegando à
clareira. Virei para trás, vi os dois e gritei “não
percam a vista”. Não entenderam e gritei novamente,
apontando para o local onde estava tudo aquilo. Eles olharam e eu voltei para
trilha. Só consegui ouvir um palavrão enorme. Fiquei muito feliz de
conseguir dividir com alguém aquela vista impressionante.
Continuei a corrida e a cada
passo tinha mais neve. Pela primeira vez eu estava num bosque com muitas árvores
caídas, galhos e raízes. Trilha da boa. Sobe. Desce. Pula. E
foi tudo enchendo de neve. Neve sobre os galhos, sobre as árvores,
sobre o chão. Como se tivesse chovido e molhado tudo, mas era neve. Nesse
momento, eu precisei parar e tirar uma foto.
Meu celular estava no meu bolso.
A câmera, em geral, funciona com toque na tela. A tela não
respondia ao toque da luva. Então veio todo o exercício
de tirar a luva novamente. Tirei só a mão direita. Peguei o celular. Liguei a câmera.
Fiz uma foto do local e uma selfie. Quase antes de começar tudo, eu já
tinha terminado, rs. Coloquei logo a luva de volta. Qualquer segundo sem a luva
congelava muito.
Até achei as fotos bem bonitas, mas olhando
para elas hoje percebo como é impossível traduzir o que era aquele lugar. A
foto não conseguiu. Quem vir a foto vai falar que conseguiu, mas eu
estive lá e a foto não chega nem perto.
Desde pouco antes já
corríamos na neve, mas era uma neve que caiu em alguma nevasca e,
com um pouco mais de temperatura iria derreter “facilmente”. Cada passo adiante a neve engrossava
mais. E haveria mais.
Continua a trilha. Sobe. Corre.
Pula.
Até o momento que chegou uma subida muito
forte. Cheia de neve. Olhei meu relógio. Km 13. Era a subida para o ponto
mais alto da prova. Então vamos subir. Eu sou ruim em subidas e
aqui, nessa subida, aos 13km de prova, eu senti câimbras. Eu me alimentei bem, me hidratei
bem, mas não teve jeito. Talvez pela temperatura extrema, as dores
vieram.
Mas (tem sempre um “mas”),
com todos os treinos que eu fiz em montanha e todas as corridas em montanha, eu
aprendi a controlar as câimbras. Eu não sei se isso é
uma habilidade, não sei exatamente se é bom ou ruim, mas o fato é
que câimbras não me impedem mais. Aprendi. Como faz? Não
sei. No meio da prova eu sei. Já fiz várias vezes. Terminei bem, nunca me
machuquei, nunca tive lesão. Tomara que não aconteça.
Eu aprendi a controlar câimbras. Na minha última prova,
elas tinham vindo no km 24. No km 13 era muito cedo, mas ok. Deixa comigo.
Subo. Subo e continuo subindo.
Uma subida cheia de árvores e você precisa
escalar entre as árvores, galhos e neve. Muita neve. Tudo neve. É
como, digamos, escalar uma subida cheia de neve. É isso. Rs.
Quanto mais sobe, menor a presença
de árvores e vegetação. Até que, em algum momento, elas acabaram. E
é
assim que acontece no topo das montanhas. A vegetação desaparece
ou se torna rasteira.
Na minha frente, no final da
subida a cerca de 50 ou 100 metros, vi um grupo de pessoas paradas tirando
fotos. Então olhei para a minha esquerda e direita e entendi onde estava.
Era uma subida completamente cheia de neve. Tudo era neve. Cercada de picos
nevados de todos os lados. Todos os lados. Pensei “vou parar onde
estão aqueles corredores, não vou parar aqui enquanto ainda resta
subida para subir”. Sempre entendo que, se estou numa subida e cansado, não
vale a pena parar antes de terminar. Se parar, estarei mais cansado para
continuar do que estou no momento.
Ao terminar a subida me encontrei
num lugar incrível. Estava no ponto mais alto da prova. E estava muito frio.
Do tipo muito. Não era mais neve sobre os galhos ou raízes. Era neve
e só.
Foi aí nesse frio
que eu percebi que lá embaixo, antes dessa subida começar,
antes de estar na Zona da Morte, eu deveria ter colocado o flecce. A camada térmica
do meio, que retirei no hotel. Agora não havia escolha, eu precisava dela.
Era ali. Eu tinha que realizar
uma tarefa muito simples: tirar as luvas, jogar as luvas no chão,
abrir o feche da mochila, tirar a mochila, jogar a mochila no chão,
tirar o anarok, jogar o anarok no chão, tirar o flecce da mochila, vestir o
flecce, vestir o anarok, colocar a mochila, fechar a mochila, vestir as luvas.
Fiz tudo isso muito rápido e durante um segundo ou dois que
duraram uma eternidade eu estava no topo da montanha congelada com vento
cortante vestindo apenas a segunda pele. É algo como estar só
com uma camiseta dentro de um freezer. Mas um freezer que quer te matar. Rs.
Brincadeira. Não, não é brincadeira. É sério.
Muito vento e muito frio.
NO MEIO
O engraçado desse
momento foi quando puxei a mochila do chão. Naquele lugar onde eu estava havia várias
pedras pretas soltas, não era só neve. Puxei a mochila do chão
e, no lugar onde ela estava, junto às pedras pretas soltas havia algo que não
era uma pedra preta solta. Era um óculos. De alguma forma, alguém
deixou cair seus óculos escuros. Um Oakley. Olhei para frente e aquele grupo já
havia desaparecido. Olhei para traz e não vi ninguém. Pensei “se eu não levar estes óculos, o próximo
grupo vai levá-lo ou vai pisar sobre ele sem sequer perceber ou este plástico
ficará aqui pela eternidade”. Peguei os óculos e
guardei-os na mochila.
Alguém perdeu os óculos.
Alguém descuidado, talvez. A gente nunca sabe a história
do outro.
Chame como quiser: deus, sorte,
universo, descuido do corredor da frente ou x. Tudo o que mais havia me
preocupado naquele dia, a montanha havia acabado de me dar de presente.
No segundo antes de colocar a
luva direita eu pensei “preciso filmar isso, preciso mostrar
para a Juliana (minha esposa) onde eu estou”. Filmei. Mais uma vez, o vídeo
não
conseguia expressar o lugar onde eu estava.
Pronto, voltemos à
corrida. Eu corri na neve. Corri mesmo. Quando dava. As montanhas gigantescas
de cada lado estavam cercadas de neve. Como um pão doce. Como um sonho. Pontiagudo,
violento e assassino. E espero que agora você olhe para um sonho com outros olhos.
Correndo, reparei em um fotógrafo
na minha frente. Carregava uma mochila gigantesca. Ele não corria,
apenas tirava foto das pessoas. Então eu corri mais. Bonito, pimpão,
todo atleta para sair bem na foto. Até que algum passo que eu dei afundou mais
do que eu imaginei e eu fiquei lá desequilibrado na frente do fotógrafo
parecendo um boneco de posto. Foi bem tosco e tomara que isso não
tenha saído na foto. Ou tomara que tenha.
Continuei correndo. Eu conseguia
distinguir um corredor uns 200 metros à minha frente. Vestido de preto. E mais à
frente mais um ou dois corredores.
Mais um fotógrafo
igual ao primeiro. Tentei correr sem desequilibrar. Fiz o que pude.
Alcancei o corredor da minha
frente (era uma corredora) e, curiosamente, tinha uma bandeira do México
na mochila da moça. Era a moça que veio comigo no ônibus.
Passei por ela e nunca mais a vi.
Muito frio e vento. Além
da touca do anarok, coloquei a bandana no pescoço e sobre o nariz e a boca. Apenas meus
olhos estavam “de fora”.
Continuei a correr e via os
corredores da frente e pensava “vou alcançar vocês, vou pegar vocês”.
Sentia que estava me aproximando. Cada vez mais.
Aos poucos a neve no chão
virou pedra solta. Encosta de montanha. Ainda lá no meio do gelo. Onde havia neve, o pé
afundava e debaixo dela, pedra solta. Ou água, que escorria pela montanha. Dava
para ouvir quando era água. Então era o desafio do equilíbrio.
O tempo todo.
De quando em quando eu puxava um
pouco a touca para olhar para a direita e para a esquerda, para não
esquecer jamais o lugar em que eu estava. Eu queria poder ter poderes para
conseguir descrever aquele lugar. Não tenho esses poderes.
Um pouco mais de corrida e
perseguição aos corredores da frente e encontrei um PC. No meio da
neve, vi duas barracas de acampamento e umas roupas estendidas num varal
improvisado. Apesar de toda a neve, estava sol. Quando cheguei lá
havia dois homens. Um vestido mais ou menos como eu e outro com roupa camuflada
do exército. Esse veio até mim.
“Está bem”?
“Sim. Sim”.
“Em 5 kms haverá um PC com
comida quente. Você terá segurança e poderá salvar sua vida lá”.
Não que eu estivesse morrendo. Era apenas
uma lembrança do falecimento do corredor no ano anterior e de que, se eu
precisasse de ajuda, o ideal seria partir para o PC fora do frio, e não
voltar àquele no meio da neve.
Dei meu passaporte para que
anotassem suas obrigações e fui embora continuar minha
perseguição. Em 5km estaria fora da neve.
Passei por lagos enormes de água
de degelo. Dois na esquerda, um na direita. E lá, a 40 metros do lago, era possível
olhar para ele e ver o fundo. Duvido que aquela água tivesse algum tipo de poluição.
Não
fiquei atraído a chegar perto do lago. Me contentei com a vista de onde eu
estava mesmo.
Andei muito nas pedras soltas.
Era difícil ficar de pé mesmo andando. Tentava imaginar como
correu o Nazário ali. De certo passou muito mais rápido que eu.
Percebi que estava descendo.
Deixando a montanha. Sempre vendo os corredores na minha frente. Então,
do meu lado direito, vi a maior montanha de todas. Não sei o nome.
Não
sei. Me desculpe. Só pude agradecer por não
precisar subir ao topo dela durante essa prova, rs. Simplesmente gigante. Na
minha cabeça fiquei imaginando quantos anos teriam aquelas formações.
Incrível. Absolutamente.
Em dado momento da descida a neve
acabou. Eram apenas pedras soltas e alguma vegetação. Eu havia deixado a Zona da Morte.
Começava a Zona do
Barro.
Muita água de degelo
gerava muito barro. Eu tentei evitar o barro o máximo possível neste trecho. É
interessante porque lá na frente, depois de muito barro, eu
nem ligaria mais, rs. O barro já era meu parceiro. Mas, naquele momento,
eu estava evitando. Desviando do barro, comecei a reparar uma planta. Usei para
me segurar e consegui reparar que era uma planta muito forte, muito firme. Era
a vegetação do local e estaria presente quase que até
o fim da prova nos próximos quase 30 km que faltavam. Os
galhos eram fortes como raízes. Chamei de árvore raiz.
Continuei descendo até
um bosque. Desviando do barro e segurando na árvore raiz. Dali para frente não
haveriam mais montanhas a subir. Apenas desníveis no bosque.
Galhos. Troncos. Árvores
caídas. Raízes. Rios. Pedras. Barro. Muito barro.
Cheguei ao PC. Aquele que me
manteria quente e vivo. Encontrei os dois corredores da minha frente. Eram duas
moças. Uma aparentava minha idade e outra um pouco mais velha.
Cheguei e elas foram embora.
O rapaz pediu meu passaporte e
perguntou se eu queria uma sopa quente. Claro! Tirei as luvas e peguei o copo
de sopa. Sentei. Abracei o copo com as mãos. Foi o miojo mais gostoso que comi na
vida. Quando terminou, tomei o caldo. Que iguaria!
Depois o rapaz me perguntou se eu
queria um café. Apresentei meu copo (um dos itens do equipamento obrigatório
era um copo não descartável) e ele me serviu água
quente. Água quente? Água quente não é
café. No chão, uma lata de café
instantâneo. Outra de açúcar. Aprontei e bebi. Não
sou muito fã de café, mas neste momento eu era bastante fã
da quentura. Rs.
Fiquei uns 5 minutos. Logo chegou
um corredor atrás de mim. Pela conversa dele com o pessoal do PC, entendi que
ele era colombiano. Conversamos. E ele só tomou o café, assinou o
passaporte e foi embora. Fui com ele.
Eu fui o seguindo e começou
então um jogo bem interessante. Existia durante a prova uma navegação.
Canos azuis refletivos ou fitas brancas ou azuis amarradas a galhos ou trocos.
Os corredores tinham que seguir essa marcação. Sempre era preciso identificar o próximo
ponto de navegação para seguir e tinha que ser rápido, senão o corredor ficava parado procurando o
próximo ponto de navegação. Às vezes dava para ver dois adiante. Três.
Então você sabia para onde tinha que ir e só
precisava se concentrar em onde pisar, como subir, como descer, onde pular e,
enfim, como chegar lá para poder achar a próxima
marcação.
Essa parte do bosque tinha uma
navegação muito complicada e é um exercício bem difícil navegar
com alguém te perseguindo. É uma pressão psicológica não planejada. Até mesmo sem
alguém te perseguir, ter que correr e navegar cansa e desgasta.
Durante esses quilômetros
em que estive com o colombiano na frente, eu não precisei navegar. Ele navegava para
mim. Sim. Eu usei o rapaz. Me perdoem. Óbvio que, ao passar pela trilha, eu
reparava os pontos de navegação. A vantagem é que eu não
precisava procurá-los. O colombiano os pesquisava para mim.
Quando a mata abriu e a navegação
ficou mais fácil, baseada na trilha, ele foi embora. Sumiu da minha frente.
Olhei para o meu relógio
para ver em quantos km estava. 22.38km. Achei estranho. Pensei que seria mais àquela
altura. “Meu relógio parou. Como posso identificar se ele
está marcando correto”? Andei mais uns duzentos metros e olhei
novamente a quilometragem 22.38km. Era isso. Meu relógio estava
pausado. Em algum momento, tirando ou colocando as luvas eu tinha pausado o
GPS. Ativei novamente e segui.
Agora eu não tinha
certeza de onde estava. Salvo a lembrança do mapa, não tinha
certeza com relação a que km estava. “Bem, de 50k não passa”.
Continuei a correr.
Alguns kms à
frente encontrei o colombiano sentado à beira da trilha com uma gaze na mão,
sem o tênis. Diminuí a corrida.
“Está tudo bem”?
“Sim, eu só vou colocar a gaze, não
é
nada”.
“Precisa de ajuda”?
“Não”.
“Então nos vemos em breve”.
Segui minha corrida. Muitos
galhos, árvores caídas, raízes, atravessar rio pisando nas pedras
para não molhar, escorregar, afundar no barro, subir, descer. Subir
para descer. Descer para subir. Parecia até uma música de axé.
Numa descida mais à
frente, num tronco imenso caído, as duas corredoras do PC sentadas.
Quando me viram descendo levantaram e começaram a andar na trilha. Eu estava numa
estratégia mais ou menos assim: plano eu corria, descida eu corria,
subida eu me esforçava, mas não corria para não me desgastar
mais do que pudesse estar. Eu percebi que elas corriam pouco e andavam mais.
Elas estavam me travando. Era a armadilha do grupo. O grupo estava cansado e
andando e eu estava imitando o grupo.
Assim que foi possível
desci por fora da trilha, pisei num barro diferente, as ultrapassei e nunca
mais as vi. Fui embora.
Continuava o bosque interminável
e a navegação que cansava. Os canos azuis ficavam no chão.
Ver um deles era gratificante por identificar o trajeto da trilha. Não
vê-los significava ter que levantar o pescoço
para procurar um tronco ou galho com uma fita. Cansava.
Meu relógio marcou 6
horas de corrida. Meu planejamento era fazer em 10 horas. Se com a pausa
inesperada do GPS eu não tivesse parado o relógio
por muito tempo, devia estar com 30km. Estaria dentro do meu planejamento.
Foi quando eu encontrei um rio.
Era o primeiro rio em que era impossível encontrar pedras para pisar e
atravessar. Ele era largo, deveria ter uns 8 metros. Fundo até
o joelho. Atravessei. Gelado. Em seguida ouvi mais alguém passando por
ele. Quando olhei para trás identifiquei o colombiano. Pensei “nossa,
as moças me atrasaram mesmo. Óbvio que eu não sou tão
rápido
e ele deve ser mais rápido que eu, mas provavelmente ele foi
mais esperto com as moças”.
“Olá, está melhor”?
“Sim”!
Perguntei para ele quantos km
tinha no relógio dele. 31km. No meu, 30.5km. Eu não tinha
pausado por muito tempo. Que bom!
Seguimos. Dividimos a navegação.
Hora eu, hora ele. Percebi que quando a navegação era clara ou quando a trilha era
simples, ele distanciava e ia embora. E foi assim até que em algum
momento o bosque abriu novamente. Eu queria agradecê-lo por toda a
navegação que ele me fez sem querer, mas ele foi embora. Rapaz
mal-educado, rs.
Km a Km continuava a luta
constante contra o bosque, com as subidas e descidas infindáveis.
De repente uma clareira verde gramada. “Ufa, vou poder correr”,
pensei inocentemente. Nada. Era charco. Piso difícil, afundava, muito barro, não
dava nem para pisar, quanto mais para correr... Segurei na planta raiz e fui
seguindo. Cada passada era muito difícil. Voltei para o bosque, atravessei
mais um rio, subi um morro, pulei uns galhos, escorreguei, afundei.
A cada subida vinham as câimbras,
mas tudo bem. Como eu disse, fui aprendendo a lidar com elas.
Eu ainda estava de luvas e
flecce. Ao me alimentar, precisava tirar a luva. Foi quando reparei que a
temperatura já estava ficando aceitável.
Resolvi tirar e guardar as luvas
e o flecce. Tarefa fácil. Sair da trilha, tirar as luvas,
jogar as luvas no chão, tirar a mochila, jogar a mochila no
chão, tirar o anarok, jogar o anarok no chão, tirar o
flecce, dobrar, enrolar, guardar o flecce na mochila, amarrar as luvas na
mochila, vestir o anarok, vestir a mochila.
Quase no fim disso tudo, um
corredor me passou. Cumprimentei-o em inglês e voltei a correr. Em seguida, logo
atrás de mim vinha uma corredora. Percebi que eles eram da prova
de duplas e a deixei passar, para ficar perto dele, e fiquei no grupo correndo
atrás dela.
Foi quando a ouvi falar em
português com o parceiro à frente:
“Será que o próximo posto de controle está
longe, Má”?
“Onde será o próximo posto de controle, Má”?
“Aqui está escorregadio, Má”.
“Eu aceito, Má”.
“Eu quero água, Má”.
“Eu estou com fome, Má”.
Não sei em que momento ela percebeu que eu
era brasileiro, mas me perguntou se eu sabia onde era o próximo
PC. Respondi que não.
Não sei se o Má era
brasileiro, mas sei que entendia português, rs.
Segui com eles. O Má
ia nos navegando. Em algum momento, ele foi para direita e errou a navegação.
Ela identificou o caminho “por aqui, Má”. Esperei o Má
voltar e fomos para a esquerda. Não precisava ter esperado, mas eles eram
uma dupla e achei por bem deixá-los juntos.
Então chegamos a um momento interessante que
dominou meus pensamentos por uns 3 ou 4 km.
Era uma região
de muito barro. Muito. Um barro preto. Sabe aquele barro que a gente via no
seriado Chaves e pensava “nem existe barro preto, é
tudo mentira”. Existe. É real.
Afundava muito. Era um pântano.
Eu via os dois na minha frente pisando e afundando. Pisando e afundando. O Má
pisou e foi direto. Afundou total. Até o joelho ou mais. E não
conseguia sair. A moça afundou em seguida. Ambos com os dois
pés.
Posso dizer que fui bem treinado.
Agradeço ao meu treinador Marcelo Sinoca e ao pessoal do Bonde do
Trail Running. Tenho treino e experiência de barro e mato. Não
sou o melhor, mas já vi ou vivi situações parecidas
em treino. Onde tinha raiz eu pisava. Onde tinha galhos ou folhas, tinha raiz e
eu pisava.
Então onde eles estavam afundando eu
conseguia passar. Alcancei-os muito fácil e estudei cada passo antes de pisar.
Fui comendo pela beirada e eles afundando. Em certo momento, afundaram de vez,
nenhum conseguia sair do barro preto. Fui passando por eles. Pisei o pé
esquerdo numa raiz e o direito não tinha como: ou eu arriscava um pulo
(que poderia estender um músculo) ou escolhia o melhor lugar no barro
para pisar. Escolhi. Pisei. Afundei. Muito. Mas eu estava segurando o galho de
uma planta raiz. Firmei a mão esquerda no galho e puxei o pé.
Ele veio. Eu saí. No que saí já pisei fora do barro preto. Nesse
momento a moça disse “eu estou presa”. O Má
também estava preso. Eu segui.
E o desafio psicológico
que me permeou durante quilômetros foi:
“Será que eu deveria tê-la ajudado a
sair do atoleiro? E ajudado ao Má? Simplesmente tirar o meu joelho do
barro e seguir em frente foi uma atitude antidesportiva minha? Foi errado? Foi
antiético”?
Somos todos atletas amadores,
nenhum de nós iria ganhar a corrida, segundos a mais ou a menos não
fariam diferença nos nossos resultados.
Consegui distinguir alguns pontos
nos meus pensamentos:
Eles estavam em dupla. Eu não
tinha dupla nenhuma. Eles tinham o dever de se ajudar. De alguma maneira. Eu não
tinha ninguém para me ajudar.
O regulamento repete várias
vezes que esta é uma corrida de autossuficiência. No congresso técnico
foi dito a mesma coisa repetidas vezes. Autossuficiência. Ou seja,
o corredor precisa cumprir a prova sozinho.
Eu somei isso de autossuficiência
e o fato deles estarem em dupla, o que, entendo eu, já é
mais do que autossuficiência e cheguei à conclusão
de que estava agindo corretamente para com a minha prova.
Mais adiante o próximo
PC. Meu GPS marcava 35km. Eu sabia que aquele era o último PC.
Faltavam 15 km.
Nesse PC havia mais dois
brasileiros. Eu cheguei, dei meu passaporte para o rapaz do ponto. Ele me
perguntou se eu queria uma sopa e eu neguei. Ele preencheu meu passaporte, eu
abasteci minha água (não tinha isotônico nesse
ponto, enchi as duas garrafas de água), peguei uma barrinha de chocolate
com flocos de arroz e fui embora. Demorei menos de um minuto nesse PC. Os
brasileiros saíram logo atrás de mim, mas cada passo eu abria distância
deles. Na subida, descida, charco, barro, outro charco, eu os deixei para traz.
A maior distância
que corri na minha vida havia sido de 40.6km em 9h04m. Fiquei olhando meu relógio pra ver em
quanto tempo chegava nesse limite. Cheguei com 8h45m. Diminuí
em 19 minutos o tempo que percorri minha maior distância. E num
lugar, digamos, um pouco mais difícil.
Minha próxima distância
chave era a maratona. Eu nunca tinha corrido uma maratona. Estava com 40.6km e
em alguns minutos atingiria 42.195. Eu me tornaria um maratonista. Bastava
acompanhar o relógio e logo eu atingiria essa marca.
Um pouco mais dentro do bosque eu
vi mais uma dupla. Um casal. Me aproximei. Quando cheguei, vi a bandeira do
Chile no número do rapaz. O número estava na mochila. Eu
cumprimentei-o em espanhol. Ninguém me respondeu.
Eles estavam com bastões,
que é um equipamento não obrigatório que, dizem e eu acredito, ajuda
muito durante o percurso e subidas. Preciso experimentar um dia. Porém
eles só andavam. Cheguei muito fácil neles por isso. Subida andando.
Plano andando. Só andavam. Estavam quebrados.
Quebrado é um termo que
os corredores usam para dizer que não aguentam mais dar um passo sequer.
Como se estivessem amarrados ou com um muro à sua frente.
Além de não me responder, consegui reparar que não
se falavam entre si. Devem ter brigado entre eles. Depois fiquei pensando “essas
duplas são perigosas, porque o regulamento diz que não
podem ficar a mais de 50 metros um do outro, ou seja, tem que correr juntos e
se o mais rápido ficar irritado com a lentidão do outro ou o mais lento com a
velocidade do mais rápido, pode dar confusão”.
Esses dois aí
nem se falavam, ainda menos comigo, rs. Passei e sumiram mais rápido
do que qualquer coisa, rs.
Então olhei meu GPS. 42.3km. Eu era
maratonista e nem fiquei sabendo. Rs.
Nesse momento, com pouco mais de
8 horas de prova a vegetação tinha perdido um pouco a folhagem e o
bosque foi ficando bem cinza. Até que se fechou completamente. Ficou tudo
muito escuro, parecia que havia anoitecido de um segundo para o outro. O barro
preto ficou bem mais difícil de identificar e de desviar. Afundei
mais aqui na escuridão. Eu sabia que havia luz do dia ainda,
era só o bosque fechado, não havia anoitecido ainda. Em breve eu
sairia daquela escuridão. Parecia muito aquele momento de medo
que vemos nos filmes de terror, do pessoal que foge para a mata. Os únicos
ruídos que eu ouvia eram as minhas passadas e uns uivos do lado
direito. Duvido um pouco que a organização tenha colocado uns uivos artificiais
por ali, rs. Se foi isso, foi uma boa ideia, tenho que admitir.
Acabou depois de 1km ou 1.5km. A
trilha virou para a esquerda e abriu para uma clareira verde. Gramado lindo. “Vai
dar para correr lindo”, eu pensei.
Novamente, charco. Difícil.
Pesado. Barro preto.
Meu relógio marcou
45km e me lembrei de uma fala do Nazário no congresso:
“Quando chegarem nos últimos
2 ou 3 km vocês verão sinais de civilização.
Uma cerca, um cavalo. Então se virem isso saibam, vocês
estão chegando”.
Eu guardei isso na minha cabeça,
mas sei que corredor tem um troço. Sabe contar km como ninguém,
mas de vez em quando diz assim “2 ou 3 km” e nunca é. Nunca.
Com 45km, do meu lado direito, vi
o que um dia foi uma cerca. Hoje não cercava nada. Algum dia cercou alguma
coisa. Hoje havia só 2 metros de cerca, mas aquilo era
civilização. 45k. Estou chegando.
De repente a trilha começou
a mudar. Passou a ser uma terra batida. Ainda com muito mato e árvores.
O barro passou a ser de cor marrom ou vermelho. Era um barro desses que estamos
mais acostumados a ver.
Outra cerca, e essa não
estava do lado da trilha. Ela impedia a passagem fechando o caminho. O próximo
ponto azul estava do lado de lá da cerca. Eu procurei a abertura,
achei. Dava para abrir, mas era mais força do que eu tinha. Então
eu resolvi do jeito simples, pular a cerca e continuar.
Eu sabia. Civilização
significava que eu estava chegando, mas eu também sabia que não eram só
2 ou 3km. Foi então que ouvi cães latindo. Cachorros. Civilização.
Nas pegadas de tênis
de corrida na trilha eu comecei a ver marcas de ferradura.
Os latidos aumentavam. Eles
estavam onde eu estava, mas eu não os via. Eles deveriam estar numa posição
mais alta que eu. De repente, não mais que de repente... Na minha
frente, 3 ou 4 cavalos. Cavalos. Cachorros. Civilização. “Eu
estou chegando”.
Voltou a trilha de terra batida e
meu pensamento dizia “tem que abrir a mata. Na hora que abrir
vem um gramado, atravessa o rio e chega na Estância Perales, que é
o fim da minha prova”. “Eu estou chegando”.
Mas, apesar da expectativa, de
repente, não mais que de repente, a trilha abriu. As árvores
sumiram. Eu vi um vasto campo verde e agora eu apostaria qualquer coisa, que não
teria charco. Uns 2 minutos à minha frente corria um dos
competidores. Todo de preto com a mochila com detalhes em amarelo. Foi incrível
porque ele estava correndo e eu estava correndo. Eu levantei os meus olhos e vi
casas, construções. “Estância Perales, é o fim da minha
prova”.
Calculei a distância
e ainda teria uns 2km pela frente, mas era o fim da minha prova.
Agora sim, grama. Trilha de terra
batida. Eu comecei a perseguir o corredor da frente. Eu sabia que não
o alcançaria, e, naquele momento, tanto fazia se o alcançasse
ou não. Reparei que atrás de mim vinham dois corredores. Não
tenho certeza se eram aqueles dois brasileiros com quem encontrei no último
PC ou se alguma outra dupla que passou por eles. E na minha cabeça
eu não queria eles me ultrapassassem. Então era essa
perseguição de todos contra todos. Até que a chave virou na minha cabeça.
“Eu
não
estou competindo nem com o cara da frente nem com a dupla de trás,
não
estamos competindo. Eu estou competindo comigo. Estou vencendo a minha maior
distância, a minha primeira ultramaratona. Eu estou vencendo o que
eu imaginei que poderia ser”.
Deu para perceber o rio se
formando do meu lado esquerdo até uma hora que a trilha abriu para o lado
direito. “Se vai abrir para a direita é para encontrar o rio de frente e não
mais correr ao lado dele”. Sobe um pouco, desce um pouco. Grama.
Trilha. Margaridas brancas e amarelas.
Não teria como ter uma legenda melhor para
um fim de prova.
Ouvi o corredor da frente
atravessando o rio. Virei para a esquerda e vi o rio. Do outro lado, dois
homens e uma mulher. A mulher era fotógrafa. Ela clicava os competidores ao
passarem pelo rio.
Eu atravessei. Tomara que a foto
tenha ficado boa. A água era deliciosamente gelada.
Crioterapia natural. Lavou todo o barro da minha calça, meias e tênis.
Os três me cumprimentaram “está chegando, está acabando”.
Coisa de 300 ou 400 metros depois
do rio, bandeiras da Ultra Fiord. Cruzei uma ponte de madeira para entrar na
Estância Perales e cruzar o pórtico. No mesmo momento em que meu GPS
marcou a linda marca de 50km.
Eu imaginei mil vezes antes e
outras mil durante a prova como seria passar esse pórtico, se eu
conseguisse chegar até ele. Eu iria chorar, sorrir, gritar,
ajoelhar?
Passei por debaixo do pórtico
e cerrei os meus punhos. Não chorei. Não sorri. Não
me ajoelhei.
Pessoas que estavam por ali
aplaudiram e parabenizaram. Em espanhol, inglês e português até.
Logo em seguida havia uma barraca da organização com suprimentos. Peguei dois pães.
Abri um deles no meio, preenchi com ovos fritos e comi. Nossa, que delícia.
Sei que ovos fazem bem após a corrida. Proteína.
O segundo pão tomei com café. Mesma coisa. Água quente, pó
instantâneo e açúcar.
Peguei a minha Final Bag (uma
sacola que o corredor poderia deixar preparada com roupas, comida, dinheiro, o
que quer que fosse). Perguntei onde havia um banheiro e fui me trocar. Era um
banheirinho bem forreca, bem beira de estrada, exceto que não
tinha estrada por ali. Mas dane-se, eu tinha uma missão maior. Tirar
toda a minha roupa molhada e colocar uma roupa quente. Nunca doeu tanto fazer
isso. Tirar os tênis, meias, calça. Credo. Colocar as outras roupas.
Levantar os joelhos. As meias novas, gente. Como doeu. Quantas vezes eu desisti
de pôr essas meias, rs. Doía demais. Doía tudo. Me
troquei e voltei lá para frente.
Eu estava sem medalha e perguntei
para alguém “e a medalha”? “Ali
na van, ao lado do pórtico, você tem que levar o chip”.
O chip estava no tênis,
lá
no fundo da sacola, rs. Encostei na van.
“Oi, eu não peguei minha medalha”.
“Sim, preciso do chip”.
Me ajoelhei no chão
e comecei a tirar tudo da sacola. Tirei e a moça comentou.
“É bonito, né? O lugar onde
se corre”.
“É incrível. É indescritível”.
“Aquilo não é uma trilha. As pessoas não
passam lá. Só passa lá quem correu”.
“Eu fiquei imaginando isso. Não
é
uma trilha. Quantas pessoas no mundo tiveram a oportunidade de passar ali?
Pouquíssimas. Apenas os corredores e algum maluco que se aventurou
algum dia”.
Entreguei o chip. Ainda
ajoelhado. O chip estava amarrado no cadarço que, por final, desamarrou duas vezes
cada um. Meu tênis também não resistiu. O pé esquerdo
abriu o bico. Literalmente. Foi a última prova dele.
A moça, sem cerimônia
alguma, deu a medalhe na minha mão. De joelhos a recebi. Peguei e pensei “moça,
você não sabe o valor que essa medalha tem para
mim”. Pus no bolso, guardei tudo de volta na sacola, voltei para
Estância para ficar aquecido, pus minhas coisas ao lado da
lareira. É um restaurante pequeno, beira de estrada sem estrada.
Peguei a minha medalha. Pesei a
medalha. Por uns segundos, todos os momentos que eu acabei de relatar, fora os
que eu esqueci ou os que não entraram para essa história,
passaram pela minha cabeça. Pus a medalha no meu pescoço,
que é onde ela deveria estar.
Me alimentei e tomei água.
Tentei ligar o sinal do celular para avisar que havia chegado, mas não
tinha sinal nenhum no meio do nada.
Esperei três horas para a
saída do barco. Ele ficou esperando até mais
corredores chegarem. Disseram que a viagem levaria uma hora. No meio do caminho,
testei o celular e, vergonhosamente, havia algum sinal. Pouco, bem pouco. Mas
tinha sinal. Enviei um SMS. Não escrevi “Feito”, ou “Terminei”, ou “Consegui”. Escrevi “Ultra”.
Terminei a minha prova às
19:23. Fiz a prova em 10h33m. 50k.
Demorei a viagem de navio, que me
deixou numa cidade perto de Puerto Natales, de lá peguei um ônibus da
organização, que me deixou no local do ônibus do começo do dia.
Peguei um taxi por ali e cheguei ao hotel depois da meia noite.
Meu nome é Francisco
Avelino.
Eu tenho 35 anos e sou
ultramaratonista.
Ultramaratonista amador. Mais
amador que ultramaratonista.
Esse foi o relato da prova mais
difícil que já vivi.
O percurso mais difícil
que eu já venci.
O adversário mais difícil.
Corra por dentro.
Um comentário:
Sensacional!
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