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quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Relato do convidado - Francisco Avelino Jr. como pacer na BR135 2020

Não vou perder muito tempo com introduções.

Vocês já conhecem o Francis. Ele já apareceu em alguns relatos meus, já apareceu em alguns vídeos, e não olhe para trás agora, senão ele pode aparecer aí também! 😆

Pois bem, eu estava precisando de um ombro amigo, um par de pernas resistentes e uma cabeça pensante e bilíngue para me ajudar a ajudar uma atleta na BR135 2020 e eis que o Francis apareceu mais uma vez.

Estourem a pipoca, peguem uma bebidinha e aproveitem esse relato! Está primoroso!

Com vocês, Francisco na BR135:





No dia 30 de dezembro de 2019 recebi um convite inusitado (procurei na minha lembrança literária se caberia outro adjetivo ao convite, mas preferi manter o involuntariamente selecionado, uma vez que a descrição do termo no dicionário coincidia com precisão ao que ele representava – Que ocorre poucas vezes; que foge aos padrões correntes; inabitual, incomum, raro; Que surpreende ou se destaca por sua estranheza; imprevisível, inesperado, surpreendente).

Segue a transcrição:

– Francis, deixa te perguntar uma coisa... você gostaria de um dia ser pacer numa prova como a BR135?
– Eu não tenho ideia de como é isso...
– Você tem que ser o cérebro do atleta, porque o bicho fica “cozido” depois de tanto tempo em atividade e já não raciocina direito.
– Uau!
– No caso, também tem que ser intérprete porque o atleta é estrangeiro. No caso, é para a próxima BR 135, entre 15 e 19 de janeiro!
– No caso, I'm afraid.

No caso eu fiquei com medo mesmo.
Explicando o termo conhecido no mundo dos corredores, o “pacer” nada mais é que um corredor que “puxa” ou “incentiva” um outro corredor a realizar a corrida num ritmo acima do que está acostumado. Obviamente, puxa apenas pela influência que pode exercer sobre o mesmo durante a prova ou treino, sem contato físico.
Não respondi prontamente pois precisava pensar no comprometimento e nas responsabilidades de exercer o papel de pacer numa corrida como esta. Passei a enumerar todas as possíveis variáveis ou dificuldades que eu poderia passar.
Em primeiro lugar, nunca fui pacer de ninguém. Comecei a duvidar das minhas capacidades ou condições físicas. Não tinha noção de qual aptidão eu teria para manter um ritmo X por tempo Y necessário para o corredor. Quantos quilômetros eu teria de correr? Quantos eu aguentaria?
Em segundo lugar, questionei a minha habilidade motivacional. Seria eu capaz de ter a força mental necessária para incentivar ou “trazer” o corredor de volta de um momento psicológico difícil para ele durante a prova?
Por outro lado, teria a oportunidade de participar de uma experiência de corrida bastante diferente ao que já me habituei. Eu seria apenas incentivador do resultado e não responsável por ele. Como vim de um 2019 com duas desistências, seria um exercício interessante para entender que a corrida não é apenas a pressão psicológica que eu mesmo exerço sobre mim quanto ao meu desempenho. Eu poderia vivenciar a corrida de forma altruísta.
Estava com medo. Era isso. Medo de não ser um corredor suficiente, de decepcionar os amigos que me convidaram e – pior – a atleta que contava com minha ajuda para atingir seus objetivos.
Tenho uma máxima que uso em vários momentos da minha vida, pessoais, profissionais, familiares ou em decisões que dependem da minha responsabilidade na sua resolução: medo é combustível. Então, quando percebo que sinto medo de algo, me proponho a fazer este algo com o máximo de dedicação possível.
Aceitei.
Durante as duas semanas seguintes passei a estudar o que era ser um pacer, como era a prova, que equipamentos eu poderia levar e a lidar com a ansiedade que a recente responsabilidade me atribuíra.
Também precisava pensar o que eu precisaria provisionar ou solicitar provisão para realizar a prova, uma vez que as refeições, bebidas e estadias antes, durante ou após a prova ficariam a cargo da atleta.
A BR 135 Ultramarathon é uma corrida que ocorre entre os estados de São Paulo e Minas Gerais, utilizando como percurso o Caminho da Fé.
O Caminho da Fé é um caminho para peregrinação inspirado no Caminho de Santiago. Ele percorre trechos de estrada de terra partindo de algumas cidades do interior de São Paulo ou Minas Gerais até a cidade de Aparecida do Norte, em São Paulo. Os peregrinos – como são chamados – podem caminhar as diferentes distâncias existentes, ou ramais, que variam de 134 a 742 quilômetros.
Para a BR 135, o percurso sairia de São João da Boa Vista (SP) e iria até Paraisópolis (MG), totalizando 135 milhas, ou seja, 217 quilômetros aproximadamente.
Os bons amigos Gabriel e Cris me fizeram o convite para ser pacer da atleta francesa Florence Morisseau. Ele tratou de me tranquilizar e assumir toda a logística, uma vez que já realizara a prova como pacer por duas oportunidades e tinha a experiência necessária para orientar alguém que só ficou sabendo que iria participar 15 dias antes da largada.
Além dos contatos e questionamentos realizados através do telefone, realizamos uma reunião no último sábado antes da prova, a fim de esclarecer, revisar e eliminar qualquer ponto de dúvida que ainda existisse no entendimento geral ou para qualquer especificidade da prova ou percurso. Este encontro me serviu para diminuir a expectativa e aumentar a confiança de que poderia contribuir grandemente para ajudar a atleta a completar a prova.
Combinamos de nos encontrar na manhã da quarta-feira para a viagem, sendo que a largada seria na quinta-feira. Sairíamos às 7h da manhã do terminal rodoviário do Tietê, a fim de chegar em São João da Boa Vista a tempo de participar do congresso técnico da prova, além de ter tempo de conhecer e se familiarizar com a atleta.
E assim se deu, na quarta-feira 15 de janeiro de 2020. Nos encontramos no terminal e percorremos de ônibus as quase 4 horas de viagem.



Seríamos duas equipes, cada um com uma competidora. Gabriel e Cris estariam com uma atleta e eu com outra.
Cada equipe seria composta de:
·                    1 atleta inscrito capaz de correr 217 quilômetros;
·                    1 motorista para conduzir o carro de apoio;
·                    2 pacers;
Eu seria um dos pacers.
O outro pacer seria a Camila. Corredora experiente no Caminho da Fé que já perdera a conta de quantas vezes o havia feito ou de quantas vezes já fora pacer nessa prova. Saber que a Camila tinha toda essa experiência foi um dos fatores fundamentais para me trazer confiança.
O motorista do nosso carro de apoio seria o esposo da atleta, Antoine. Também francês e corredor, mas que veio apenas apoiar a esposa.
Ao chegar na cidade, fomos conduzidos pela atleta da equipe do Gabriel e Cris, Heidi, até o congresso técnico.
No congresso, fui apresentado à Camila, Florence e Antoine.
De pronto, Camila já passou a me utilizar como tradutor para conversar com Florence e Antoine. Estava ansiosa para conversar sobre a estratégia da corrida e apresentar sua experiência e confiança na realização da prova. Além de ser pacer, eu seria intérprete oficial da equipe. Também pude apresentar a mim e as minhas expectativas a respeito da parceria que viríamos a aplicar nas próximas horas.
Conversamos, almoçamos juntos e pudemos estabelecer como funcionaria o pacer e o revezamento de tal tarefa entre mim e Camila.
Minha maior preocupação eram as subidas, onde costumo diminuir a minha velocidade. Combinamos que quando houvesse um trecho de muita subida, ela assumiria o revezamento. Como ela conhecia o caminho de olhos fechados, foi um bom acordo. Ela saberia que subidas eu teria capacidade ou não de servir como pacer a Florence.
No congresso foi nos informado que os primeiros 33 quilômetros (trecho de São João da Boa Vista até Águas da Prata) o atleta deveria fazer sem acompanhamento de pacer, ou seja, deveria correr sozinho, no máximo acompanhado pelo carro de apoio ou encontrando o carro de apoio durante o percurso. Em edições anteriores, segundo Camila, este tipo de apoio (de pacer ou carro) não era permitido, de forma que o atleta percorria este trecho totalmente desacompanhado.
Florence evidenciou que gostaria de fazer este trecho totalmente sozinha, sem apoio, pois era como gostava de correr. Deixar a mente fluir, sem se preocupar naquele momento com o carro ou os pacers.
Após o almoço, houve uma apresentação dos corredores estrangeiros presentes na prova. Eram muitos. Cada um deles pode dizer seu nome, de onde veio e qual era sua intenção na prova. Muitos aproveitaram o momento para agradecer a hospitalidade e amizade do povo brasileiro.
Em sua fala, Florence disse:

– Olá, eu sou Florence, da França. Estou muito feliz de estar aqui com meu esposo e muito sortuda de ter um time fantástico me apoiando e espero – cruzando os dedos – chegar ao final da prova.

Ao final do congresso, nos dirigimos aos respectivos hotéis. Cada equipe ficou alocada em um hotel distinto.
Mais tarde, nos encontramos todos (o time Florence) na piscina do hotel e enquanto Florence e Antoine se refrescavam e Camila molhava os pés, eu fiquei na borda. Ficamos conversando durante um longo tempo sobre as provas que cada um já havia feito.
Jantamos os dois times juntos, para podermos interagir e descontrair as tensões que antecediam prova.
Florence presenteou a mim e a Camila com uma caixa de biscoitos franceses para cada, além de uma camiseta de uma ultra realizada na Ilha da Reunião (território francês próximo à Madagascar) para mim e uma camiseta do UTMB para Camila (prova considerada a Copa do Mundo da corrida de trilha e o sonho de consumo para Camila).
Ao final do jantar nos despedimos com a certeza de que a largada na manhã seguinte seria o início de uma grande aventura para todos, mas principalmente para Florence e Heidi, as atletas inscritas.
No amanhecer seguinte, tomamos café, cumprimos os tramites de checkout do hotel, fechamos todas as malas, guardamos tudo dentro do carro e nos dirigimos para a largada que aconteceria às 10h.
A poucos minutos da largada, encontramo-nos ambos os times, ouvimos o Hino Nacional Brasileiro, tiramos fotos e nos posicionamos. Florence e Heidi logo atrás do pórtico da prova e os demais ao lado, após ele, de onde poderíamos ver os primeiros metros dos 217 quilômetros que seriam percorridos pelas duas atletas.
Às 10h da manhã da quinta-feira, 16 de janeiro de 2020, largaram.
Em poucos minutos, todos os corredores haviam percorrido um trecho de 200 metros de asfalto, feito uma curva à esquerda e sumido da visão de quem estava parado ao lado do pórtico. Deste instante em diante, todos se dirigiram aos respectivos carros de apoio, para acompanhar seu atleta ou para ir até o próximo ponto de apoio combinado entre a equipe.
Havíamos combinado de encontrar Florence no quilômetro 10, para reabastecê-la de água e verificar suas condições após a dura subida em asfalto da Serra do Deus Me Livre. Depois só a encontraríamos novamente em Águas da Prata, no quilômetro 33, onde passaríamos a correr ao lado dela.



Chegamos, estacionamos o carro ao lado da estrada e aguardamos. Neste momento eu, Antoine e Camila conversamos sobre a prova e revimos a estratégia que havia sido feita: encontrar Florence ali, depois em 23 quilômetros e depois a cada 2, 3, 4 ou 5 quilômetros, conforme ela se sentisse confortável.
Com aproximadamente 1 hora e 25 minutos começaram a chegar os líderes da prova. Todos encharcados, fosse de suor ou de água que tenham jogado sobre a cabeça. O sol fez questão de participar da BR 135 e de deixar tudo inesquecível para todos. A temperatura estava muito alta. Próximo ao asfalto então, deveria estar mais quente ainda.
A primeira e segunda mulheres, líderes da prova chegaram lado a lado. Eu conhecia uma delas, Silvia. Havíamos feito um treino juntos cerca de 3 semanas antes, em Atibaia. Silvia não parou em carro de apoio nenhum, enquanto a outra atleta parou no seu carro de apoio e logo seguiu.
Pouco após as duas partirem surgiu Florence. Estava na terceira posição.
Chegou junto ao carro, pediu gelo para morder e começou a reabastecer a água. Estava claramente sofrendo pela temperatura. Sua pele estava muito rubra e sua roupa totalmente molhada. Em sua expressão era evidente o quanto sofreu com a temperatura da subida até o ponto onde estávamos.

– Eu preciso que vocês me encontrem antes de Águas da Prata.

O calor e o sofrimento a haviam feito mudar a ideia inicial de correr o primeiro trecho totalmente só. A necessidade de ter apoio ou até socorro antes dos 33 quilômetros se mostrou evidente e ela não teve dúvidas em mudar os planos.


Ela então partiu abastecida para o trecho em trilha a seguir.
Conversamos com mais alguns apoios que estavam por ali e seguimos em comboio para o próximo ponto possível de apoio. Ficava a 6 quilômetros de onde estávamos. Paramos num local com sombra, montamos uma cadeira e separamos água enquanto Antoine cortava uma manga para Florence comer quando passasse.
Passaram então os primeiros corredores, depois Silvia, depois a moça que eu não conhecia e então veio a Florence, ainda em terceira. Parou, comeu a manga e bebeu água. Ainda estava sofrendo com o calor, mas já tinha expressão mais positiva do que a do primeiro ponto de apoio. Isso nos deu ânimo e tirou o peso de preocupação que carregamos quando a apoiamos pela primeira vez, enquanto ela seguia em frente.
Com menos receio de algum mal-estar de Florence, nos encaminhamos para Águas da Prata. Ela ainda levaria uma hora ou duas para chegar, com previsão de passar neste ponto às 15h. Compramos suprimentos para a corrida, Camila encheu as nossas mochilas de água e paramos para almoçar em um quiosque na entrada da cidade, por onde os corredores desceriam da trilha. Almoçar é jeito de dizer. Compramos um salgado e um refrigerante cada, sentamo-nos para comer quando alguém gritou:

– Florence! Florence!

Estava indicando que a nossa atleta havia saído da trilha de onde viriam os corredores. Eram cerca de 14h20. Nesse momento, as minhas suspeitas de que tínhamos na equipe uma corredora forte e pronta para terminar entre as primeiras colocadas se concretizou. Ela adiantou em cerca quarenta minutos sua previsão de chegada na cidade.
Florence se abasteceu, comeu e saiu para continuar a corrida, desta vez acompanhada de Camila, que faria este trecho como pacer.



Em cerca de 10 quilômetros nos encontramos novamente. Eu já estava com a mochila preparada para assumir o pacer em revezamento com Camila.
Quando chegaram, Florence cumpriu sua rotina. Tomei um gole de água e partimos para o meu primeiro pacer na vida. Corremos juntos por cerca de 8 quilômetros. Tentei manter sempre um ritmo superior ao de Florence em cerca de vinte ou trinta por cento. Quando uma subida chegava, ela corria um trecho e então começava a caminhar. Eu obedecia a este ritmo, mas sempre considerando um ritmo maior que o que ela oferecia, justamente para que sua mente se mantivesse ativa em perseguir o corredor mais próximo, no caso, eu.



Comecei a entender e traduzir os movimentos executados por Florence ouvindo seus passos. Conseguia identificar claramente quando estava correndo, andando, aumentado ou diminuindo o ritmo, sem precisar olhar para ela. Quando alguma subida estava terminando, ela começava a correr, para chegar embalada ao trecho de plano ou descida a seguir, e então eu corria também.
Ao final deste primeiro trecho, Camila retomou o revezamento ao lado de Florence e pude descansar um pouco até o próximo ponto.
Eu e Antoine nos dirigimos então até Andradas, a próxima cidade onde faríamos apoio. Passamos por Florence, a corredora que eu não conhecia e Silvia, ainda em primeira na prova. Chegando lá, fomos a um mercado e compramos frutas, água, pães, queijo, presunto, refrigerante e até papel higiênico. Guardamos tudo no carro e nos dirigimos até o ponto de entrada da cidade no caminho dos atletas. Lá Antoine montou um lanche para Florence enquanto eu comia, preparava minha mochila e separava os coletes refletivos, uma vez que ficou perceptível que a noite cairia em breve.
Neste momento percebi que as nuvens não estavam apenas ficando escuras pela aproximação da noite, mas também pela chuva que estavam trazendo. Em poucos minutos foi possível observar vários raios entre elas.
As atletas chegaram. Florence comeu o lanche e abasteceu a mochila com água. Estava muito estabelecida, bem diferente da Florence que encontramos sofrendo no primeiro ponto. Colocamos o colete refletivo nela – eu já estava com o meu – e partimos.
Corremos lado a lado. Fui encontrando as setas amarelas referentes ao Caminho da Fé pintadas pela cidade e conduzindo Florence pela corrida. A marcação da corrida era a mesma do Caminho, do início ao fim. Das ruas, partimos para a estrada que deixava a cidade. Nos posicionamos na beira do asfalto enquanto passavam carros, ônibus e caminhões. Muito deles acostumados com peregrinos caminhando por essas estradas, mas talvez nem tão habituados a ver alguém correndo.
Saímos da estrada de asfalto e entramos numa estrada de terra já com a noite acima de nós. A lanterna da Florence era forte o suficiente para nós dois, o que foi ótimo pois percebi que minha lanterna ia perdendo poder de iluminação com o passar dos quilômetros.
Em algum momento, depois de muitos raios clarearem a noite e trovões retumbantes nos fazerem companhia, a tempestade chegou. Minha lanterna de cabeça já não apresentava qualquer ganho na luminosidade à nossa frente, então acionei a minha lanterna reserva, de mão, que se mostrou bastante útil, uma vez que a lanterna de cabeça de Florence iluminava a estrada, eu utilizada a lanterna de mão para observar as marcações ao longo do caminho.
Nos encontramos com Antoine e Camila embaixo de chuva depois de cerca de 10 quilômetros. Era uma subida em asfalto. Troquei de lanterna, pegando a lanterna da Camila. Eu trocaria as pilhas da minha lanterna quando trocasse de lugar no revezamento. Neste momento não nos demoramos muito. Seguimos em frente. O próximo ponto de apoio, que ficava a cerca de 5 quilômetros, teria refeição oferecida pela organização.
Seguimos.
As subidas foram cruéis e infindáveis neste trecho. A chuva diminuiu sua intensidade e passou a apoiar nossa corrida, refrescando todo o calor que sofremos durante o dia. Mas já havia chovido de mais, o que tornava as descidas em estrada de terra uma aventura percorrida entre técnicas e escorregões. Os tênis de trilha ficaram pesados com o barro que insistiu em nos acompanhar. Não adiantava bater o pé no barro para tirar o barro que estava no pé. Só adiantava seguir.
Chegamos no ponto de apoio onde era oferecida refeição por parte da organização. Florence comeu um macarrão alho e óleo. Eu comi um pé-de-moleque e tomei uma água com gás. Tudo muito rápido. Logo estávamos no perrengue do barro novamente. A chuva nos acompanhava, bem mais fina e piedosa do que quando começou.
No próximo ponto de apoio, Camila estava pronta para assumir o revezamento quando chegamos. Eu estava bem cansado pelo esforço das subidas íngremes e das descidas escorregadias. Foram 22 quilômetros neste trecho. Ao final Florence me fez um elogio e acho que eu não soube responder bem:

– Você foi um pacer mágico!
– Não tanto quanto poderia.

Depois percebi que poderia ter dito apenas “obrigado”, mas realmente achei que poderia ter sido melhor, caso tivesse mais experiência. No entanto, pudemos avançar consideravelmente neste trecho de chuva, onde todos ficaram bem lentos, o que era parte da estratégia de Florence, correr o máximo possível durante a noite para evitar o mesmo sofrimento passado à luz do dia.
As atletas seguiram correndo enquanto eu e Antoine nos dirigíamos até o próximo ponto de apoio, que seria na cidade de Crisólia, MG. Lá, segundo Camila, ao lado da praça principal da cidade, haveria um restaurante 24 horas, onde eu e Antoine poderíamos jantar.
No caminho, devido às chuvas, tivemos que fazer um desvio com o carro por uma estrada diferente da utilizada no Caminho da Fé, uma vez que passar de carro pela via principal seria quase impossível devido ao desnível e à via enlameada e escorregadia. Tal desvio, entretanto, não foi nada fácil. O veículo derrapava de um lado a outro e foi bastante difícil executar a direção na descida. Quando subia, em algum trecho, a sorte não era nem um pouco melhor. Numa das subidas o carro começou a perder a tração até não se movimentar mais. Tentamos deixar o carro descer um pouco a fim de tomar impulso, mas qual não foi a surpresa ao perceber que não conseguíamos parar o carro na descida? De alguma forma, depois de alguns minutos de luta contra o barro conseguimos efetuar a manobra que nos permitiu sair desta região de atoleiro e continuar até a próxima cidade.
Eram cerca de 0h quando chegamos e não havia restaurante nenhum aberto. Então nos alimentamos com o que havia de comida no carro mesmo.
Não mais chovia, mas eu estava com bastante frio. Foi quando percebi que ainda estava com a roupa molhada de chuva do trecho de corrida anterior. Troquei as roupas de corrida e coloquei uma blusa térmica para esperar as atletas. Tentei dormir até que chegassem, mas não consegui mais que 20 minutos de descanso. Acredito que estava tenso ainda com tudo que estava acontecendo.
Um tempo depois as corredoras chegaram. Não me lembro de ter visto a Silvia passar por onde estávamos, nem a outra moça.
Camila e Florence comeram e reabasteceram as mochilas e partiram para o próximo ponto de apoio. Em seguida, Antoine e eu nos dirigimos até o mesmo ponto para esperar a chegada delas, na cidade de Ouro Fino.
Não consegui dormir, nem ficar sentado no carro. Desci e fiquei andando pela praça situada pouco depois da entrada da cidade. Havia uma rodoviária e um posto de policiamento com as luzes acesas. O carro ficou estacionado na entrada do que confiei ser um centro de compras ou algo do tipo. Havia também uma ponte que passava por cima de um rio. O único barulho que se ouvia era do rio correndo seu curso ou de algum corredor cruzando a ponte.
Camila e Florence chegaram. Eu assumi o revezamento. Camila sempre me orientava sobre como seria o caminho no próximo trecho. Tirei a minha blusa térmica para não esquentar muito durante a corrida e peguei a lanterna que estava com ela. Seguimos pelas ruas da cidade, eram 1h37 da manhã.
Neste momento, identifiquei o carro de apoio da corredora que estava em segundo lugar e que eu não conhecia. Percebi que o carro estava com o nome dela, ou apelido: Fran.
Ela se juntou a nós em dado momento, antes mesmo de sairmos da cidade e corremos os três juntos por algum tempo. Depois Fran acabou ficando um pouco para trás. Mais alguns quilômetros e ela nos alcançou e ultrapassou. O carro de apoio dela, a esta altura, ia iluminando o caminho que ela fazia.
Depois que Fran e seu carro de apoio nos ultrapassou, voltamos a ficar apenas com as luzes das lanternas.
Estive 10 quilômetros com Florence. Só corri ao seu lado dentro das cidades, fora delas eu avançava um pouco e estabelecia o ritmo para incentivá-la. Camila assumiu o revezamento no próximo ponto de apoio e mais uma vez, nos dirigimos até a próxima cidade, Inconfidentes, MG, para encontrá-las.
Já era madrugada, mas eu não estava cansado. Os momentos correndo eram ótimos. O tempo passava, as paisagens também. Ficar parado era complicado sem sono e o corpo doía. Às 3h30 da manhã eu reassumi o posto de pacer. Seriam mais alguns quilômetros até o próximo ponto de apoio. No caminho, segundo Camila, haveria um posto de gasolina 24 horas que contava com chuveiro. Caso quisesse, Florence poderia tomar um banho.
No trajeto até o posto, não me lembro exatamente com quantos quilômetros, próximo da metade do trecho, a lanterna que eu tinha na cabeça apagou. Ou acabou a bateria ou algum cabo de encaixe na bateria soltou. Eu segui com a lanterna reserva até o posto.
Ao chegar no posto tivemos a informação de que o banheiro onde seria possível tomar banho não era tão possível assim. Camila recomendou que Florence não tomasse banho porque as condições do banheiro não eram muito boas. Comemos e Florence decidiu dormir 15 minutos. Ela já estava correndo há mais de 18 horas. Caminhou uns 30 metros à frente do carro estacionado, deitou-se no chão e ali ficou.
Neste intervalo, eu troquei as pilhas da minha lanterna de cabeça e de mão. Camila verificou se algum cabo havia se soltado da lanterna de cabeça que apagou, mas estava tudo no lugar. Era a bateria que não estava mais entre nós.
Após o intervalo de Florence, voltamos à corrida madrugada adentro. Foi um trecho curto de mais 8 quilômetros até a próxima troca de revezamento.
No carro, fomos até o próximo ponto de parada, coloquei novamente a blusa térmica e finalmente consegui dormir. Acredito ter dormido cerca de uma hora. Quando acordei já estava amanhecendo.
Quando as atletas chegaram, não pararam. Camila informou que cerca de 1 quilômetro à frente havia um checkpoint, onde deveriam parar para informar o número de peito de Florence. Adiantamo-nos com o carro e entramos na cidade de Borda da Mata, MG, então esperamos ao lado do posto de controle. Era uma praça em frente à igreja central da cidade. Era uma cidade bem estruturada e havia lojas em volta. Logo identifiquei uma padaria.
Eu sabia que Camila ainda correria cerca de 5 quilômetros a partir daquele ponto e então sugeri a Antoine que, quando as atletas partissem, fôssemos até a padaria tomar um café. Ele gostou da ideia. Quando as corredoras chegaram, informei também a elas sobre a padaria e verifiquei se gostariam que comprasse algo para que comecem em na próxima parada. Escolheram o que queriam e partiram enquanto eu e Antoine fomos tomar café. Foi um breve momento de civilização durante o percurso. Compramos pães, café, isotônicos, chocolate e o que as corredoras pediram para a próxima parada.
Já no caminho, de carro, passamos pelo carro de apoio da Fran. Ela estava junto do carro e com uma cara de muito sofrimento. Olhei para Antoine e ele olhou para mim, percebemos que algo poderia estar errado com a Fran.
Então me dei conta de um fato curioso. Durante a noite, por várias vezes, nos momentos que adiantávamos o carro até o próximo ponto de apoio, passávamos pela Fran, da mesma forma que o carro dela passava por nós enquanto estávamos parados esperando Florence e Camila. Mas eu nunca mais havia visto Silvia. As possibilidades no momento para mim eram bem simples:
·                    Opção 1, Silvia correu tão bem que desapareceu do raio médio de avanço do carro; ou
·                    Opção 2, Silvia desistiu;
Uma vez que nenhuma outra corredora havia passado pela gente, isso implicava que:
·                    Opção 1, estávamos disputando o segundo lugar bravamente com Fran; ou
·                    Opção 2, estávamos disputando o primeiro lugar;
Qualquer das opções era fantástica.
Mais um ponto de parada e mais uma troca de revezamento. Pouco antes das atletas chegarem, comentamos no carro como o tempo estava bom para correr, sem a presença marcante do sol como no dia anterior. Eram 8h da manhã.
Corri mais 10 quilômetros até chegarmos em mais uma cidade, Tocos do Mogi, MG. Neste ponto Camila nos esperava com um sorvete e Antoine com melancia. Fiquei com o sorvete. Florence pôde enfim tomar um banho numa pousada presente na avenida principal. Quando voltou, renovada, seguiu o caminho com Camila. Quando estávamos saindo com o carro da cidade, estava chegando o carro de apoio de Fran.



 Faltavam 60 quilômetros para o fim da jornada. Pelas minhas contas, como Camila estava assumindo o revezamento neste momento, eu chegaria à linha de chegada com Florence.
Antoine e eu aguardávamos no próximo ponto quando ficou perceptível que o sol estava de volta à corrida.
Quando Camila e Florence chegaram, pude conversar com Camila a respeito da minha suspeita de estarmos em primeiro ou segundo lugar e sobre as condições de Florence.

– Então, como ela está?
– Sua situação está decaindo. Ela não está mais correndo o tempo todo, mesmo na descida. E acredito que está com assaduras.
– Entendo. Não vou citar nada sobre a posição dela na prova, para que não a faça gastar mais energia do que dispõe e termine quebrando antes do final.

Assumi o revezamento mais uma vez. Este trecho especificamente contou com  uma soma de subidas seguidas que quase não nos deixavam um intervalo sequer de piso plano. Sofri junto de Florence, mas tentei sempre estar à frente e motivando para que ela não se deixasse abater pelo extremo esforço. Quase no final do esforço, e com o sol a torrar, Florence pediu água e gelo a um carro de apoio de outro atleta. Molhou a cabeça e a nuca, mordeu o gelo, respirou e continuou. Era visível esse sentimento e preocupação mútuos entre as equipes de apoio. Por diversas vezes, quando estava no carro, perguntava aos corredores que passavam se estavam bem ou se precisavam de alguma ajuda. O mesmo ocorria quando estava correndo e recebendo atenção dos demais.
Passaram-se 10 quilômetros e o último trecho da quarta maratona de um total de cinco. Informei Florence que faltava apenas 1 maratona. Cerca de 40 quilômetros para acabar a prova. Camila assumiu o revezamento.
Quando este trecho de Camila terminou eu pude reassumir o revezamento. Mais uma vez, um trecho de muitas subidas numa estrada de terra que levantava bastante poeira sempre que um carro passava. O sol nos acompanhava sem piedade. Paramos em outro carro de apoio, onde perguntei se poderiam compartilhar um pouco de gelo. Florence mordeu o gelo, colocou uma pedra dele dentro de cada luva e continuamos o sofrimento.
Encontramos nosso carro de apoio duas vezes, mas só trocaríamos o revezamento na terceira vez, na pequena cidade de Consolação.
Ao entrar na cidade, uma faixa estendida dava boas-vindas aos corredores da BR 135. Aquela faixa não significava apenas mais um trecho concluído, significava que faltava apenas meia maratona.


Florence sorria! Sofria e sorria. Seriam 10 quilômetros de subidas e descidas e mais 10 quilômetros para o fim. Nesta troca de revezamento, as corredoras já saíram utilizando colete refletivo e lanternas na cabeça, pois mais uma vez a noite se aproximava.
Paramos o carro no próximo ponto de apoio. Ficava ao lado de uma porteira que dava passagem a uma ponte de madeira. Antoine olhou a ponte e riu nervoso imaginando se ela suportaria a passagem do carro. Era metade do caminho até a última troca, onde eu ajudaria Florence a terminar sua prova.
As atletas chegaram quando a noite começava a cair, já de lanternas acesas embora ainda não estivesse totalmente escuro. Comeram, abasteceram a mochila e seguiram caminhando.
Continuamos de carro logo em seguida. A ponte foi forte e resistiu à nossa passagem. No ponto de parada a seguir, 5 quilômetros adiante, coloquei minha blusa térmica para aguardar a próxima troca. Fazia frio e ventava fora do carro, mas não via os mesmos raios da noite anterior.
Acabei cochilando no carro e acordei com a chegada de Florence e Camila. Saltei do carro com muita pressa, tirei a blusa, vesti a mochila, o colete e a lanterna e segui em frente. Camila me deu uma lanterna de mão a mais, para emergência. Na saída, Florence foi bem clara comigo:

– Estou com assaduras por todos os lugares.
– Por todos os lugares? Nossa.

Tentei não expressar o quanto estava preocupado ou o quanto era solidário à sua dor, uma vez que eu já havia passado por isso em uma ultramaratona anterior. Lembro que mal consegui andar nos últimos 15 quilômetros da minha prova. Faltavam 10 quilômetros para o fim, eu não queria que ela percebesse qualquer piedade minha para com ela, para que não assumisse também qualquer autopiedade. Era a prova que ela escolheu e o final estava chegando.
Era noite densa quando partimos às 20h.
Caminhamos num primeiro trecho plano. Era evidente que minha lanterna estava enfraquecendo sua luminosidade, porém a lanterna de Florence estava firme e forte como um farol automotivo.
Em algum momento começamos a descer e Florence decidiu correr. Eu corri com ela, dessa vez ao seu lado. Não havia mais necessidade de puxar a atleta. Ela já tinha feito tudo que poderia. Todo seu esforço havia sido empregado. Logo as subidas voltaram e voltamos a caminhar. Ventava muito. O vento era tão forte que chegava a ser capaz de desequilibrar a mim e a Florence. Não tinha ideia do lugar onde estávamos devido ao breu da noite. As lanternas iluminavam a estrada sem perder o foco pelo caminho por onde precisávamos passar. Em dado momento, novamente caminhando, Florence me fez outro elogio.

– Você é um ótimo pacer.
– Obrigado! É a minha primeira vez fazendo isso. Tentei ser o que imaginei que você precisasse. Ficar perto, incentivar durante a corrida e manter silêncio, para que você pudesse se concentrar em sua mente e no seu caminho.
– Era exatamente o que eu precisava.

Fiquei feliz de conseguir corrigir meu erro ao elogio anterior. Não sei se mereci qualquer elogio. Não sei se pude realmente ser um bom parceiro de corrida, mas sei que ao menos consegui agradecer desta vez.
Encontramos Antoine e Camila duas vezes, com distâncias de cerca de 3 quilômetros. Diminuímos a distância por conta do cansaço e debilidade de Florence. Continuando o caminho após primeiro encontro de apoio, percebi que alguém nos seguia. Algum corredor se aproximava. Pensei imediatamente em Fran, que poderia ter realizado uma corrida de recuperação nos últimos 30 quilômetros e nos alcançado.
Florence só percebeu alguém atrás de nós quando ouviu as vozes da conversa que realizavam entre si. Não consegui identificar só de ouvir as vozes quantos corredores eram ou se eram homens ou mulheres. Quando se aproximara mais um pouco, percebi 3 luzes.
Acredito que Florence possa ter pensado o mesmo que eu com relação a Fran e começamos a correr preocupados em sermos ultrapassados depois de tanto esforço.
Quando as luzes se aproximaram foi possível perceber que era apenas um corredor, um homem, seguido de seu carro de apoio. O carro ia iluminando o caminho. Nos ultrapassaram numa descida e quando o carro passou, voltamos a ficar apenas com as luzes das lanternas.
Percebi que a minha lanterna estava enfraquecendo mais uma vez, tirei dos bolsos e acendi as duas lanternas de mão que carregava, para verificar qual iluminava mais o caminho. Tive grata surpresa ao perceber que a lanterna de emergência de Camila era extremamente luminosa, quase não sendo necessária a lanterna de cabeça de Florence.
Encontramos o carro mais uma vez e pela última vez. Desta, Antoine passou a nos seguir, como havia feito o carro e o corredor que nos ultrapassaram pouco tempo antes. As luzes automotivas eram ótimas. Desliguei minha lanterna para poupar energia. Só voltei a ligar numa última subida, chegando na cidade, onde o veículo precisou acelerar para subir. Eles nos ultrapassaram e foram em frente para nos esperar no final da prova.
O chão de terra se tornou paralelepípedo quando chegamos na cidade. Encontramos casas, pessoas carregando sacolas, voltando de suas compras ou passeios. Era uma descida e lá embaixo podíamos ver o carro parado com pisca alerta ligado. Logo continuaram e quando chegamos percebi que não poderiam avançar pois se tratava de contramão. A rua, entretanto, estava fechada para a passagem exclusiva dos corredores. Faltavam 200 metros.
Quando chegamos na praça, a 10 metros do pórtico de chegada, deixei Florence para que terminasse sua corrida. Me posicionei ao lado do pórtico. Uma moça da organização se prontificou a me corrigir.

– Vá com ela! Vocês fizeram a prova juntos!

Fui.
Cruzamos o pórtico juntos depois de 36 horas e 20 minutos de corrida.
Uma moça tirava fotos enquanto outra nos recebia:

– É a primeira mulher! A campeã feminina!




4 comentários:

Estela Vaz disse...

Francisco, momento mágico não é?! Parabéns pelo seu trabalho e resiliência!!!! Tenho certeza que vc nunca vai se esquecer disso!!! E a equipe toda, cada vez melhor, se superando e criando no Brasil algo que não tinha antes, verdadeiro apoio a atletas, com camaradagem e lealdade!!! Estela Váz

Francisco Avelino disse...

Obrigado!

Henrique Avelino disse...

Parabéns aos envolvidos!
Mas, mais precisamente ao moço chamado de Francisco, Chico, Junior, entre outros, que particularmente, prefiro chamá-lo de irmão!
Sou uma fã assíduo de seus textos e ainda mais fã de suas conquistas (cada uma delas), que tenho certeza, não se resumem só as indivisuais, como demonstrado muito bem acima.
Você é um exemplo pra mim!
Não sei o quanto isso importa, mas quero um dia ser metade do que você é! E a outra metade, do nosso outro irmão, assim, serei completo! kkkkk

Walmir disse...

Excelente conquista, excelente texto! Parabéns a todos!!!!