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terça-feira, 20 de agosto de 2019

Não é só correr

Após completar os 80km da La Misión Brasil no ano passado, senti um grande vazio. 

Foi a realização de um sonho e a conclusão de um longo projeto pessoal e, de repente, eu me vi sem ter um objetivo. 

Perdi o foco, perdi o desejo de participar de provas, perdi a vontade de madrugar todo final de semana, ganhei peso! rs

Afinal, parecia que nada iria chegar perto da grandiosidade daquela experiência, do êxtase que foi concluir meus primeiros 80km do jeitinho que terminei.


Mudanças em nossas rotinas pessoais também me levaram a uma brusca queda no volume de treinos e quando, finalmente, resolvi me dedicar a treinar para uma prova novamente (a Ultra Trail Challenge Pedra Grande), acabei me lesionando.


Como não poderia correr na data da Ultra Trail Challenge Pedra Grande (e já são 120 dias sem correr desde então...), resolvi ser staff daquela prova. Foi uma experiência muito enriquecedora, como descrevi no relato.


De lá pra cá, passei pelas 5 fases do luto corredor lesionado - negação, raiva, barganha, depressão e aceitação - e finalmente me conformei que esse não é o meu ano.


Quer dizer, estava conformado até chegar agosto. A La Misión foi se aproximando, fui vendo fotos e vídeos do pessoal se preparando para a prova e comecei a sair do meu estado de apatia. Fui ficando verdadeiramente animado por todos os amigos que iriam correr a prova.


Assim, quando surgiu o convite da organização para que a gente participasse da prova como staff, não tive dúvidas de que queria, e muito, fazer parte dessa festa de alguma forma.


Chegamos à Passa Quatro no fim da tarde de sexta-feira, retiramos nosso kit-staff, fomos brifados, ajudamos um amigo a resolver uns pererecos de última hora, vimos e abraçamos muita gente querida. 


Às 4h da matina de sábado já estávamos de pé e às 5h nos apresentamos para serviço.



5h da matina. A cara é de sono,
mas a animação está lá no alto!
A Cris foi com um carro de apoio para o seu posto (uma bifurcação num trecho do percurso de 80km) e eu segui numa Kombi para o PC Paiolinho, onde iria organizar todas as drop bags dos atletas de 80km e controlaria a passagem de todos os corredores dos 50 e 80km.


Check in no posto de serviço às 6h



Depois de algumas horas brincando de tetris, as drog bags
ficaram assim =)
Como disse no instagram, meu objetivo era transformar o PC sob minha responsabilidade em um pequeno oásis, onde os atletas poderiam não apenas matar sua sede e saciar sua fome, mas - principalmente - onde também poderiam se abastecer de energia e calor humano.
Simulando o atendimento do
primeiro "autleta" 

Fiz o possível para receber com a mesma alegria, atenção, carinho e dedicação desde o primeiro colocado (que passou por mim por volta das 11h da manhã de sábado, se não me falha a memória) até o último atleta (que chegou ao meu PC pouco depois das 5h da manhã de domingo); desde meus amigos de outras provas e treinos até pessoas que nunca vi antes.

Sente a responsa!
Fiz o meu melhor para incentivar e orientar, passando a eles as informações técnicas ou as tagarelices descontraídas, de acordo com o que julgava que era o que o atleta precisava ouvir naquele momento.

Fiz isso de peito aberto e transbordando de alegria, pois sei exatamente o que cada um deles estava sentindo quando chegava ao meu PC.

Doei 100% da minha energia, e ainda assim saí de lá com mais energia do que cheguei.

Foram muitos os aprendizados e muitos os momentos marcantes, mas para não deixar o texto longo demais (como tenho o costume de fazer), deixarei aqui uma listinha de "pequenas grandes" lembranças que trago dessa experiência:

- o medo de não atender às expectativas da organização e dos atletas;

- o peso da responsabilidade;

- a vergonha de não saber de cor todos os códigos do rádio (QAP, QRA, QSL, QRL...);

- passar calor e tostar a cara e a nuca no sol inclemente desde o meio da manhã até às 16h e depois passar frio e muito mais frio das 16h até às 9h do dia seguinte (em determinado momento eu estava com nada menos do que 3 calças e 6 camadas de roupas na parte superior do corpo, um gorro e um boné por cima!);

- ter a companhia de vários dogs ao longo do dia (e tomar canseira de alguns deles! rsrs);

- o bom humor do pessoal que estava pilotando a cozinha e preparando a deliciosa canjiquinha para os atletas;

- a euforia quando o PC virou quase uma balada de tanta gente rindo e conversando no escuro;

- abraços e mais abraços dos amigos que passavam pelo PC; 💗

- abraços misteriosos (porque alguns atletas chegavam com as lanternas ligadas, ofuscando minha visão - que já estava adaptada à escuridão - me reconheciam, me chamavam, abraçavam e só depois de um tempo é que eu conseguia identificar a pessoa 😄);

- a estranha oscilação entre momentos frenéticos (com mais de 10 atletas chegando ao mesmo tempo) e momentos absolutamente e assustadoramente calmos, sem aparecer viva alma por 40 minutos ou mais, já durante a madrugada;

- aguentar firme e forte no posto por praticamente 30 horas ininterruptas;

- a sensação de estar embriagado após terminar meu turno, com um misto de cansaço físico, cansaço mental, muito sono e sensibilidade à flor da pele (só de falar "canjiquinha" meus olhos enchiam d'água! hahaha);

- a alegria ao dar meu primeiro trotinho (nem bem 500m), descendo até o Rio Verde para remover a marcação após fechar o PC;

- a sensação de dever cumprido ao ver, no dia seguinte, que efetivamente consegui ajudar alguns corredores a "mudar a chavinha mental" e entrar de volta na prova após um período de energia baixa.

Outra memória bastante viva foi a da minha primeira alucinação induzida por privação de sono.

Eu já estava enxergando corredores e números de peito em todos os lugares. Qualquer árvore chacoalhando ao vento era um corredor pra mim. Em um dos momentos, quando finalmente me sentei, de frente para a fogueira, tarde da noite, vi nitidamente um corredor sentado, de capacete e mochila, acenando para mim. Quando fiz menção de acenar de volta, o corredor se desmaterializou na minha frente, tornando-se fumaça. Coisa de filme mesmo! Loucura, loucura! hahaha

Após 30h de atividade, estamos como?
Com 3 calças, 6 blusas, um gorro e um boné por cima.
E muito sono!
Um pouco menos de roupa,
um pouco mais de sono.
Nem parece que essa
foto foi tirada meia só hora
depois da foto acima.
Nada como um trotinho na trilha
após 120 dias sem correr!
Errar é humano e certamente devo ter errado com alguém em algum momento, mas se errei com você, jamais pense que foi por desídia ou desinteresse.

Pelo contrário! Eu queria fazer tanto por todos ao mesmo tempo e por tanto tempo que em algum momento o cérebro pode ter dado um "tilt".

De todo modo, se errei com você, peço perdão.

Deixo aqui o meu muito obrigado a todos os atletas, por me permitirem fazer parte da jornada de cada um de vocês, e também o meu muito obrigado à organização, por depositar a confiança em mim para esse trabalho tão importante, que consome tanta energia física mas retribui com uma energia humana tão significativa.

Com os manda-chuva...
Não é só correr - se fosse, não teria graça!


...e com os guarda-chuva 😄

6 comentários:

Anônimo disse...

Muito legal seu relato. Eu passei no Paiolinho as 15h do sábado no percurso de 50 (63) KM E LEMBRO DE VOCÊ. Obrigado pela ajuda.

Gabriel C. disse...

Obrigado pelo comentário. Foi um prazer ajudar!

Juan disse...

Caraca, então era ocê!!!! Kkkkkkkkkkkkkk! Mano, passei lá por volta de 12h30, percorrendo a prova de 50K. Não sei se vai lembrar, mas a primeira coisa que eu lhe perguntei foi se tinha um banheiro. Tu não só indicou como falou que tava limpinho. Salve engano devo ter sido um dos primeiros a usar. Rsrsrs. Salvou, viu?! Bacana demais. Obrigado aí por tudo. Breve momento, mas que transmite uma energia do bem. Gratidão aí! Espero ser STAFF algum dia de alguma prova e retribuir um pouco do que ganhamos. Muito obrigado!

Gabriel C. disse...

Hahaha lembro sim. Você estava certamente no top 3 da utilização do banheiro! rsrs
Recomendo a experiência de ser staff! Se tiver a oportunidade, abrace-a! TMJ! Abraço

Unknown disse...

Que demais o seu relato! Ser staff é uma experiência muito bacana, ainda mais como uma prova como essa. Foi um prazer conhecê-lo brother, sua recepção foi muito boa, não faltou nada! E essa prova é incrível, ano que vem quero estar nos 80k. Abraços!

Gabriel C. disse...

Velu pelo comentário. Ser staff é uma responsabilidade muito grande, mas compensa muito. Principalmente quando vc tem feedback positivo dos corredores! Abraço e até ano que vem!