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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Relato: BR 135 Ultramarathon - Pacer

Gostaria de ter o talento necessário para transmitir por essas linhas toda a emoção, o aprendizado e os momentos que marcaram minha participação na BR135  (135 milhas = 217km com mais de 10 mil metros de acúmulo positivo) desse ano.
Mesmo não tendo talento para tanto, vou aplicar uma das incontáveis lições que aprendi ao longo dessa prova e seguirei em frente apesar das dificuldades (como diria Scott Jurek: Sometimes you just do things). Lá vai:



Dia 9 de dezembro de 2015. Esse foi meu último dia de sono tranquilo.
Mal sabia eu que no dia seguinte, enquanto levava minha pacata vida de escritório, receberia uma ligação do Carlos Mello com uma proposta indecente e irrecusável.
" - Alô, Gabriel? Pode falar um minutinho? Como está seu inglês? Topa integrar a equipe de apoio de um atleta americano que irá participar da BR? Você irá acompanhá-lo nas subidas e entrará no carro de apoio nos planos e nas descidas, ok? Então vou passar seu telefone para a Mônica Otero"

Desliguei o telefone e fiquei em silêncio na copa do escritório por mais alguns minutos esperando o tremor e a fraqueza das pernas passarem para poder voltar à minha mesa. Iniciava-se ali um período de mais de 40 dias de sono entrecortado e irrequieto.

Primeiramente, o simples fato de participar da ultramaratona mais icônica do Brasil já era suficiente para deixar qualquer um emocionado. Mas quanto a isso eu já havia me acostumado com a ideia, pois fazia alguns meses que o Carlos havia me convidado para ser parte da equipe de apoio de um quarteto feminino sob sua tutela (Caldeirão das Marinas).

O que tirou meu sono foi que, além de participar de uma prova lendária, eu teria a oportunidade de atuar numa equipe coordenada por uma verdadeira lenda viva das ultras: a Mônica Otero. Se você conhece um pouco da história das ultras no Brasil, ela dispensa maiores apresentações. Se você não conhece, recomendo uma breve pesquisa no google antes de continuar a leitura do texto.

Não bastasse isso, eu iria atuar como pacer e intérprete de um atleta que causou alvoroço na edição de 2013 da BR ao contrariar todas as expectativas e concluir a prova com louvor apesar de todas as dificuldades. Minha missão: ser pacer e intérprete de ninguém menos que André Kajlich, paratleta biamputado (acima dos joelhos), ultraman, paratleta do ano nos Estados Unidos em 2013, representante americano no mundial de paratriathlon, participante de provas de 400 milhas de ciclismo e mais, MUITO mais que isso.

Em 2013 eu havia visto vídeos e lido reportagens falando sobre sua participação na BR135 e aquilo ficou na minha memória. Jamais imaginaria que em 2016 eu seria parte dessa história.

Pois bem. Uma vez aceito para integrar essa equipe (apesar de meu irrelevante currículo esportivo) a apreensão só aumentou. A responsabilidade era tremenda, como vocês podem imaginar.
Adiei minha off season de fim de ano e passei a aumentar o tempo em atividade. Não queria correr o risco de decepcionar o time - mesmo porque eu havia pesquisado o nome dos demais membros da equipe e vi que eram todos referência em esportes de longa distância.

O tempo foi passando, inúmeros emails foram traduzidos, detalhes foram acertados, estratégias foram mais ou menos traçadas e então chegou a semana da prova.

A equipe seria formada por Mônica (crew chief e motorista), Ronaldo Marletta (pacer), eu (pacer), Peterson Cesar (ciclista de apoio), Giancarlo (motorista) e Mariana (esposa e musa inspiradora do André rs).

Contudo, a semana que antecedeu a prova trouxe chuvas torrenciais e inundações ao longo do Caminho da Fé (por onde passa o percurso da BR). A informação divulgada era a de que apenas veículos 4x4 poderiam utilizar as estradas para acompanhar os atletas.

O Peterson entrou em contato com o Jipe Clube de sua cidade e conseguiu uma caminhonete 4x4 com 2 motoristas (Hermes e sua esposa Luciana). Ele teve também de abandonar o plano de usar sua bike para apoiar o André nos locais onde os carros não iriam passar.

Antes de partir para São João da Boa Vista, onde se inicia a prova, o trabalho de intérprete oficial começou com uma entrevista para a Revista O2. Pode não parecer muito para muitas pessoas, mas a minha superação já começou aí: tenho verdadeiro pavor de câmeras e microfones! Mas quando surgem imprevistos, você tem que superá-los.



Chegando em São João fui forçado a perder o medo de câmeras e microfones em 3 segundos. A cada um minuto (ou menos) alguém surgia pedindo para eu dizer alguma frase ao André (geralmente dizendo que em 2013 a sua força de vontade contagiou a todos e fez com que todos os atletas que tiveram contato com ele na ocasião passassem a encarar a vida e os desafios com outros olhos) ou traduzir uma entrevista, ou ainda para tirar fotos com ele.




Seu status era de uma verdadeira celebridade. Mas foi interessante notar que, apesar de ele repetir constantemente que nos EUA ninguém daria a mínima para ele em um evento como esse, todo aquele assédio não o incomodava. Pelo contrário, ele repetiu vezes sem conta que um dos motivos de escolher voltar ao Brasil foi justamente a cordialidade e simpatia de todas as pessoas que ele cruzava pelo caminho.

Distância e Altimetria da BR 135. Dureza!
Durante a cerimônia de retirada de kits e apresentação dos atletas eu tive uma leve recaída no meu pavor de microfones e dei uma lindíssima gaguejada ao traduzir a apresentação do André... foi só pegar no microfone e olhar para a câmera que me deu branco em boa parte do que ele havia dito e minhas palavras saíram numa rajada incompreensível... rsrs


De volta à base de operações do Team Kajlich, pegamos sua cadeira e dirigimos até alguns morros para que ele testasse as alterações feitas na cadeira após a prova de 2013. O problema é que não há como ele simular as condições da prova no local onde ele mora, então ele só iria saber se as alterações seriam positivas ou negativas na hora da verdade.


Emocionado na hora do Hino
21 de janeiro, 7h55 da manhã. Hino nacional cantado, últimas entrevistas concedidas (inclusive uma já na linha de largada), desejos de boa prova e lá foi ele!



Entrei num carro de apoio de outra equipe, pois o meu estava lotado (rs), e dirigimos uns poucos quilômetros para aguardar os atletas e para eu trocar de carro.
Assim que acabasse o asfalto e começasse a estrada de terra eu teria de estar de prontidão para acompanhar o André.

Cruisin' (Foto: Unifae)



Acontece que quem deveria me esperar simplesmente ligou o f*d@-se e me largou para trás... o que explica se vocês encontrarem uma foto minha correndo alucinadamente no pelotão da frente da prova nos primeiros quilômetros.

Tentando alcançar meu carro 
Assim que a Monica percebeu que eu não estava onde deveria estar ela voltou com o carro dela e me apanhou... se ela não tivesse voltado para me apanhar no lugar de quem deveria ter feito isso, eu ainda estaria correndo a prova no esquema survivor! rsrs



Finalmente encontrei o atleta que deveria apoiar e lá fomos nós para a primeira subida de terra e para o teste de fogo das adaptações da cadeira.


Bora lá! Só deixa eu comer essa bisnaguinha aqui! (Fotos: Hermes Lopes)
As adaptações se mostraram muito bem-vindas e o André conseguiu desenvolver bem na subida que levava até a mata e ao único singletrack do percurso. Nessa subida começamos a ser ultrapassados por muitos corredores e o André fazia questão de retribuir a todos eles uma frase de incentivo (sua preferida era "divirta-se").




Não está sendo fácil
Um pouco antes do singletrack havia uma placa fixada numa árvore que eu lembrava de ter visto no vídeo do André de 2013, no qual ele dizia que teria de esperar encontrar o seu intérprete na estrada para perguntar o que significava. Dessa vez o intérprete estava presente e fez questão de traduzir a placa.



Essa foi a reação: My feet will help me?! MY FEET?! rsrs
No singletrack tivemos um pequeno-grande susto quando uma roda escorregou e a cadeira tombou de lado num barranco! Eu e o Ronaldo quase morremos do coração ali! rs

Vídeo AQUI

Após o susto, que por sorte não passou mesmo de um susto, o André achou melhor descer da cadeira, amarrar uma corda nela e se deslocar no chão usando as mãos, com a corda na boca, por 15m (extensão total da corda) para então puxar a cadeira até ele.









Eu e o Ronaldo não poderíamos auxiliá-lo em nada além de desvirar a cadeira se ela tombasse.
Desde o começo o André foi bem claro no sentido de que não queria nenhum tipo de ajuda que o empurrasse para a frente. O máximo que poderíamos fazer por ele seria desvirar a cadeira se ela tombasse ou então apoiar nossa perna atrás da cadeira para evitar que ela escorregasse para trás em ladeiras muito íngremes enquanto ele descansava os braços.



No início, essa dinâmica causava certa agonia, pois nosso instinto era o de ajudá-lo ao máximo para superar os obstáculos. Contudo, uma vez que entendemos sua motivação e sua força mental, foi muito fácil respeitar sua vontade. Ele não queria qualquer tipo tratamento especial. Como ele mesmo disse, a prova é dura para todos, então não poderia ser mais fácil para ele.

Saindo do singletrack tivemos o primeiro gostinho de lama no percurso e não nada foi legal.
Ao afundar na lama, os aros propulsores ficavam extremamente escorregadios. Sem aderência, o André era forçado a usar muito mais força dos punhos para deslocar a cadeira por poucos centímetros.

Desse modo, sempre que passávamos em uma poça, parávamos e o Ronaldo passava uma toalha nos aros e nas luvas do André para tentar melhorar o grip. De tempos em tempos também trocávamos as luvas para ver se melhorava em algo.



De Águas da Prata para o Pico do Gavião fomos surpreendidos por uma chuva daquelas bem bravas. Formou-se uma lâmina d'água em toda a estrada e mal dava enxergar 100m adiante.










Acreditava que aquela chuva iria nos acompanhar pelo resto da prova, mas por sorte ela durou pouco tempo e não deu mais as caras.




(Fotos: Hermes Lopes)


No entanto, o estrago já estava feito. Se a lama antes já estava atrapalhando, após a chuva a aderência das luvas no aro propulsor da cadeira ficou ainda mais prejudicada. Por esse motivo levamos muito tempo para superar mesmo trechos relativamente planos ("relativamente", pois não existem trechos verdadeiramente planos na BR!). Nesse momento o Peterson e o Hermes colocaram a caixola para funcionar e fizeram umas gambiarras nos aros da cadeira, de forma a torná-la mais aderente, e deu certo, embora a lama e a umidade continuassem a atrapalhar.




Ainda em função disso, quando chegamos à base do Pico do Gavião, por volta das 18h (com 10 horas de prova num trecho que anteriormente o André conseguiu fazer em menos de 6h), seus punhos estavam destruídos - super inchados e doloridos. Como a luva não tinha aderência, ele foi obrigado a usar os punhos para forçar as rodas para dentro e assim empurrar os aros. Esse movimento (totalmente incomum) repetido por horas e horas estava de alguma forma danificando seus braços e causando muitas dores.

Hora de retocar os curativos e atacar o cume do Pico do Gavião
Na base do Pico do Gavião a Monica e equipe haviam montado o "acampamento". Ali, o Peterson fez os primeiros curativos e furou as primeiras bolhas das mãos do André, nós comemos algo e rapidamente partimos.
A super íngreme subida do Pico do Gavião foi cheia de altos e baixos mentais. A progressão estava muito lenta, o dia se tornou noite e as dores do André estavam cada vez mais fortes.




Tentamos distraí-lo com piadas e conversas e ao final de quase 4h finalmente vencemos o Pico do Gavião.

Subindo o Pico do Gavião percebemos que deixar o André descer aquilo sozinho seria o mesmo que incentivar o suicídio. A inclinação era brutal e ele não tinha mais forças nos punhos para apertar o freio da cadeira. Então decidimos que iríamos amarrar a corda na parte de trás da cadeira e eu e o Ronaldo iríamos usar nosso corpo para frear a cadeira na descida.



Testando os freios no Pico do Gavião (Fotos: Monica Otero)

Os primeiros km foram extremamente lentos e causaram algumas dores e incômodos que eu e o Ronaldo não estávamos acostumados, mas com o tempo aprendemos como usar nossos corpos da melhor forma para garantir a segurança do André sem nos machucar.




(Fotos: Peterson Cesar)

A descida do Pico do Gavião (de aproximadamente 5km de extensão) foi concluída em 1h, o que demonstra que o plano inicial de recuperar a velocidade e ganhar tempo nas descidas não seria possível.

Após nos acostumarmos mais com as descidas usando a corda, essas seções passaram a ser bem divertidas. Deixávamos nossas lanternas com o faixo de luz mais fraco (para não ofuscar o André) e descíamos em velocidade máxima sem ver onde estávamos pisando (já que a cadeira cobria nosso campo de visão), iluminados apenas pela luz da lua e pela lanterna do André.

Na sequência, na direção de Andradas, quando as luvas e os aros finalmente estavam secos o suficiente, tivemos de cruzar um rio, no escuro. Quis entrar no rio na frente do André para sondar onde era mais fácil para ele atravessar mas ele insistiu que eu entrasse no carro para não molhar meus tênis e evitar bolhas.

Atravessando o rio



Chegamos à Andradas às 3h da manhã, montamos acampamento para o André alongar, comer uma refeição quente, trocar as bandagens e fazer novos curativos nas mãos e saímos de Andradas às 4h, curtindo um luar maravilhoso (tão maravilhoso que eu até desligava minha lanterna) e discutindo amenidades.

Aliás, de todas as muitas memórias que eu guardarei dessa prova, o luar da primeira madrugada - especialmente poucas horas antes de o sol nascer, quando a lua ficou amarelada - e os bate-papos que tivemos naquele momento serão coisas que irei lembrar com carinho por muito tempo.
De noite pedíamos para o carro seguir adiante e nos deixar sós por longos trechos, aproveitando o silêncio da noite e a luz do luar para pensar na vida, compartilhar confidências e objetivos, lembrar de histórias engraçadas... a sensação era a de que éramos amigos de longa data.

Amanheceu quando estávamos para iniciar a famosa e implacável Serra dos Lima. A vantagem é que, por ser uma via asfaltada, não havia problema com aderência da cadeira. Por outro lado, a inclinação daquela Serra é algo que só estando lá para compreender. Vídeos e fotos não fazem justiça a esse trecho do percurso.





Tivemos de parar no meio do percurso para o André descansar. Seus punhos estavam doendo demais e ele também precisava descansar um pouco após mais de 24h de atividade intensa. Colocamos um colchonete no meio do cafezal e deixamos ele descansar por 20 ou 30 minutos.
Nesse intervalo surgiu a ambulância da prova, o que foi excelente, pois estávamos realmente preocupados com os punhos do André - que estavam super inchados.
O Doutor o tranquilizou e esclareceu que era apenas uma inflamação nos tendões por causa do esforço excessivo e repetitivo feito pelo André para tentar se deslocar com a cadeira no terreno enlameado do início da prova. Sim, doía muito, mas não estava causando nenhum dano permanente.



Encarando a Serra dos Lima (Fotos: Monica Otero)


Refeito, o André subiu na cadeira e terminou de subir a Serra dos Lima, superando esse trecho às 9h30.
Foi a primeira vez que virei 24h em atividade, sem dormir e fiquei bastante feliz com meu desempenho com relação sono. Só fui começar a sentir sono após umas 32h de prova e, mesmo assim, quando tive a oportunidade de dormir, não devo ter dormido por mais de 30 minutos. A adrenalina e a expectativa de que poderiam precisar de mim fizeram com que eu estivesse sempre "ligado" - pelo menos até a segunda noite... pois dali em diante eu virei um zumbi mesmo! rsrs









De Serra dos Lima para Barra progredimos bem até a Serra do Sabão, que como o nome já diz, é muito escorregadia. Tivemos bastante trabalho para superar a pequena e extremamente íngreme subida. Nessa e em outras subidas, geralmente eu ia atrás, para não deixar a cadeira escorregar morro abaixo, e o Ronaldo ia na frente para retirar as pedras maiores do caminho.






No caminho de Barra para Crisólia, quando o percurso ficou mais plano, decidiram que seria melhor o Hermes me deixar no centro da cidade e depois voltar para acompanhar o André, já que o percurso era tranquilo e ele não precisaria de dois pacers, e assim eu poderia tentar dormir um pouco.

(Foto: Joseli Simões)

(Foto: Joseli Simões)

(Foto: Joseli Simões)
Em Crisólia fizemos mais um pitstop completo para o André, com troca de curativos, soneca, refeição quente e tudo mais.

O trechos entre Crisólia e Ouro Fino e entre Ouro Fino e Inconfidentes foram bem tranquilos e relativamente rápidos.





Na segunda noite, já entre Inconfidentes e Borda da Mata, eu estava bem cansado. Não queria dar o braço a torcer, mas o sono estava forte. O Ronaldo acabou ficando sozinho com o André por boa parte desse trecho. Mas nas subidas ou descidas mais fortes eu descia do carro para ajudar.
Acabamos desenvolvendo uma técnica para as descidas em que o Ronaldo ia atrás para segurar a corda para frenagem e eu ia adiante para fazer um reconhecimento do caminho e escolher as melhores linhas para eles passarem. Funcionou bem!

Quando o sono começou a bater para o Ronaldo, eu assumi o posto novamente. Tivemos momentos engraçados e momentos silenciosos, momentos de reflexão e momentos de tensão. Como na descida que o André pediu para que eu soltasse a corda para ele aproveitar a gravidade para ir mais longe e acabou perdendo o controle da cadeira e indo parar no barranco ao lado da pista, quase comendo mato! rs

Ou quando fomos surpreendidos pela Patrulha Rural da PM-MG fazendo uma 'emboscada' com fuzis e tudo mais atrás de ladrões de gado! A adrenalina desses dois momentos foi suficiente para nos manter acordados por mais algumas horas! rs

Quando a adrenalina baixou, pedi para o Ronaldo me substituir novamente e fui para o carro tentar descansar um pouco. Não sei ao certo quanto tempo se passou, mas lembro de acordar com o Ronaldo e o Peterson do lado de fora do carro e bastante preocupados com o André.

Já havia dado 4h da manhã, estávamos a pouco mais de 3km após o centro de Borda da Mata e o André estava tremendo muito e pegando no sono no meio das frases! Colocamos ele dentro do carro, trocamos a roupa molhada dele por uma seca e o cobrimos com todos os casacos disponíveis, cobertores de emergência e etc., e deixamos o ar quente do carro ligado.

A Monica ligou para a equipe médica e explicou o que estava acontecendo, com medo de ser uma reação ao anti-inflamatório que ele estava tomando para conter a inflamação dos tendões. A orientação médica foi de que ele repousasse por algum tempo e que ficássemos de olho nos tremores, pois poderia ser uma hipotermia.

Fiquei dentro do carro com ele e, enquanto ele dormia, eu deixava minha mão por dentro das cobertas, encostada em seu peito para verificar os tremores. Após pouco tempo ele parou de tremer. Entre um cochilo e outro eu verificava seu estado e o informava ao Peterson que estava do lado de fora do carro.

A Monica dormia no banco do motorista, o André dormia do passageiro e eu e o Ronaldo pescávamos no banco traseiro. Os pobres Hermes, Luciana e Peterson ficaram do lado de fora do carro na parte mais gelada da noite mais fria da prova!

E então, após aproximadamente 1h com o veículo parado no escuro da madrugada, fomos acordados por um tiro! O Hermes começou a gritar "Amigo! Amigo! Estamos esperando os médicos! Amigo!", o Peterson praticamente se atirou ao chão, e a Luciana eu não vi... mas guerreira como é, nem deve ter ligado! rsrs

Após alguns instantes surgiu uma senhora com uma lanterna para verificar o que estava acontecendo. Ela morava na chácara em frente ao local onde havíamos parado o carro e estava preocupada que fossemos bandidos de tocaia para assaltá-la, como já havia acontecido antes.

Claro que eu só entendi tudo isso na manhã seguinte, pois no meu sono zumbístico eu mal tinha forças para levantar a cabeça!

Aproximadamente às 6h da manhã o André acordou. Antes mesmo de se mexer ele disse que suas mãos já eram. Que a dor era forte mas que o maior problema é que ele não tinha mais forças para apertar a mão na roda ou no freio.
Dito isso, ele virou para trás, olhou para nós e declarou: então vamos acabar logo com isso. Vamos até a próxima cidade, ou pelo menos até o próximo morro... ou pelo menos por mais 30 minutos. Isso, vamos continuar por mais 30 minutos.

Fiquei arrepiado na hora. Jamais vi demonstração maior de emprego da força mental para superar adversidades físicas. Ele sabia que as mãos e punhos estavam destruídos, sabia que ainda faltavam muitos quilômetros e muitas horas (mais um dia, praticamente) de sofrimento pela frente e mesmo assim decidiu que iria abandonar o calor e o conforto do carro para conquistar quantos quilômetros fosse possível antes do tempo de corte.

Ele abriu a porta do carro, levei a cadeira até próximo da porta e, quando ele foi descer, sua mão falhou. Fiquei com o coração cortado. Ele olhou para cima, deu um meio sorriso, subiu na cadeira e reuniu o time para uma "assembléia".


Durante a 'assembléia'
Todos dissemos que o apoiaríamos em qualquer decisão que ele tomasse. Que se ele quisesse continuar na pista até segunda-feira, estaríamos com ele. Se ele quisesse avançar até Consolação, estaríamos com ele. Se ele quisesse avançar só até o topo do próximo morro, estaríamos com ele. E, claro, sabendo das dores e possíveis consequências desse esforço, se ele sentisse que não daria mais para avançar, nós estaríamos ao seu lado.

Dito isso, ele pediu para que gravássemos um depoimento em vídeo e ele repetiu a declaração de que tentaria seguir em frente um morro por vez. Sem pressa. Enquanto fosse possível.

A equipe inteira se emocionou e se mobilizou para seguir adiante.

E adiante nós fomos! Apesar da dor e do cansaço, o estado de espírito do André estava melhor do que nunca. Sua disposição transbordava!
Avançamos com vigor e determinação, num ritmo que eu não via há muitas e muitas horas.




E os 30 minutos viraram uma hora... e depois duas, três, quatro horas. E então a dor e o cansaço começaram a falar mais alto outra vez.

André me confidenciou sobre a única vez que ele havia abandonado uma prova e sobre o que ele achava que havia sido um dos fatores determinantes naquela situação.
Talvez ele já estivesse me dando os sinais... ainda assim continuamos por mais uma hora.

(Foto: Hermes Lopes)
O sol já estava a pino, as subidas eram absurdas, a dor provavelmente lancinante e o André sabia que a pior parte ainda estava por vir (Serra do Caçador).

Às 11h30 paramos para mais uma sessão de curativos com o propósito de ele descansar para poder seguir por "só mais 30 minutos" e então encontramos um novo e sério machucado. Como sua perna estava sempre coberta, nem ele e nem ninguém lembrou de verificá-la. Quando, finalmente, ele foi olhar sua perna todos se assustaram. Havia ali um grande machucado que se não tratado a tempo poderia impossibilitar o uso das próteses no dia a dia.

Já sabíamos naquela hora que não seria possível atingir Paraisópolis dentro do tempo de corte oficial, mas ainda estávamos dispostos a seguir com ele por quanto tempo fosse necessário. Só que não queríamos que isso fosse feito em detrimento de sua saúde e qualidade de vida.

Por quase uma hora discutimos em equipe, cada um expondo seu ponto e analisando os dos demais e então foi tomada a decisão de abandonarmos a prova.

Apesar da tristeza e certo medo de ter decepcionado o André, todos concordamos que abandonar a prova nesse cenário era mesmo a decisão mais acertada.

O André fez questão de dizer que não poderia esperar um trabalho melhor de toda a equipe e ressaltou ainda que só chegou até onde chegou por causa da equipe. Segundo ele, ele estava pronto para abandonar a prova antes mesmo de atingir o cume do Pico do Gavião e que se não fosse o empenho, dedicação e pensamento rápido da equipe para contornar todos os imprevistos surgidos com a chuva, ele certamente teria parado antes. Foi um momento muito emocionante para todos. Cada um declarando seus sentimentos e manifestando apoio incondicional e eu tentando traduzir tudo sem chorar muito. Em determinado momento deu tilt no meu cérebro e eu falava em inglês com a equipe e em português com o André, mas o idioma dos sentimentos não precisa de tradução. Todos entenderam.

Feita a sessão desabafo, todos se sentiram mais leves e as piadas e o bom humor que caracterizaram a equipe ao longo de toda a prova voltaram a reinar.





No carro, no caminho entre o local onde abandonamos a prova e o nosso hotel na linha de chegada, percebi que o André estava muito introspectivo. Antes mesmo de eu tentar falar uma frase de apoio ele virou para mim e disse: "abra aí um bloco de notas. Acho que para a próxima vez nós vamos precisar das seguintes adaptações..."

É isso, amiguinhos, o show não pode parar! Vem mais emoção por aí. E quando vier, estarei mais pronto do que nunca!


_________

Reflexão sobre o papel do Pacer

Muito além de ditar o ritmo e lembrar ao atleta quando esse deve comer, passar protetor solar, beber, ingerir sal, descansar ou apertar o passo, o que senti como pacer nessa prova é o que eu imagino que um pai sente com um filho.

Senti aquela disposição de desconsiderar os riscos à minha pessoa e pensar apenas na segurança do atleta sob minha tutela.

It's all fun and games until someone gets a sunburn
Como quando desci ladeiras num pace que eu não faço nem em treinos de tiro, com minha lanterna desligada e sem enxergar onde estava pisando, apenas para não prejudicá-lo. Ou nas vezes que eu ia comer algo (como um sanduíche que eu havia pedido para prepararem para mim há mais de uma hora ou ainda o único snickers de toda a Serra da Mantiqueira) e ele olhava para trás e dizia "o que é isso que você está abrindo?" e eu sem pensar duas vezes colocava o lanche ou o chocolate inteiro em sua boca.

Quer minha papinha? É sua!
Ser pacer é também ser um confidente, um ombro amigo e um incentivador. É saber interpretar os sinais do atleta e verificar se é hora de contar uma piada besta, cantar uma música brega ou discutir filosofia e alimentação saudável.

É saber elogiar o atleta num momento em que ele está indo muito bem e elogiar ainda mais num momento em que ele está se sentindo para baixo.

No caso do André, em particular, não precisei me preocupar muito com animá-lo em momentos ruins, pois nunca vi alguém com uma abordagem tão positiva da vida e dos obstáculos no caminho. Diria que em 80% do tempo a sua energia mental e seu bom humor prevaleceram. Não o vi mal humorado em momento algum. No máximo em silêncio em algum momento de grande dificuldade. Mas bastava ele mesmo perceber que estava nessa "vibe" baixa e ele puxava um assunto para se distrair.

No briefing da prova e nos primeiros 15km de percurso, onde encontramos muitos corredores, ouvi incansáveis vezes o quanto as pessoas se inspiravam nele. Mas talvez essas pessoas não saibam que ele também se inspira e se alimenta do esforço delas. Ao longo de todo o caminho, onde quer que estivéssemos sempre que alguém passava por nós essa pessoa aplaudia ou gritava frases de incentivo. muitas com lágrimas nos olhos... numa praça (em Inconfidentes, se não me engano) um rapaz se aproximou de nosso "acampamento" por volta da uma da manhã e ficou nos observando em silêncio por uns 20 minutos, quando caiu nas lágrimas. Ele soluçava e chorava de emoção e pediu para tirar uma foto do André.
Quase 10 horas depois disso o André me disse que ver o rapaz chorando era um dos motivos de ele ter decidido continuar a prova mesmo após a possível hipotermia e a falta de força nas mãos.

André e o rapaz que não parava de chorar
Vou demorar muito tempo para assimilar tudo o que vi e aprendi nessa prova - de fato, talvez jamais consiga assimilar tudo.

Mas o pouco que eu conseguir assimilar será o suficiente para me ajudar a encarar a vida de outra forma. Finalmente vivenciei como uma ultra está relacionada à vida: por mais que você se prepare e se planeje, sempre surgirão imprevistos. Cabe a você determinar se irá desistir, reclamar ou tomar uma atitude para superar o obstáculo. Trinta minutos de cada vez.

Por fim, gostaria de deixar aqui meus agradecimentos:
Carlos Mello - obrigado por me indicar como candidato a essa vaga que claramente estava fora da minha alçada.
Monica Otero - obrigado por confiar em mim mesmo sem me conhecer pessoalmente e sabendo que meu currículo de provas não era vasto o suficiente para o tamanho da encrenca. Como você mesmo disse, agora sou seu afilhado nas ultras e você pode ter certeza que não irei lhe decepcionar, madrinha! É um orgulho fazer parte dessa família (só vou me sentir mesmo parte da família quando eu mesmo finalizar minha ultra como atleta rs) e um orgulho maior ainda ter sido introduzido nessa família por uma pessoa que eu admirava desde 2013, quando li o livro do Márcio Villar pela primeira vez.
Ronaldo - muito obrigado por me passar confiança, dividir comigo suas histórias e sua vasta experiência nas ultramaratonas. Adoraria poder correr ao seu lado novamente. Seja como membro da mesma equipe de apoio, seja como pacer, seja em treinos ou em competições. Você é um monstro!
Hermes e Luciana - obrigado por disponibilizarem seu tempo e seu veículo para se enfiar no meio de um bando de loucos que vocês nem conheciam e por não pouparem esforços para que a equipe atingisse seu objetivo. Vocês são pilotos exímios, com grande senso de humor e dedicação sem igual!
Peterson - obrigado por não ter desistido da equipe quando ficou claro que não seria mais necessário o uso de bikes de apoio. Sua mente inventiva (professor Pardal), bom humor, proatividade e excelência na prestação de primeiros socorros salvaram a equipe de grandes enrascadas!
André - obrigado por me dar a oportunidade de aprender tanto contigo em tão pouco tempo. E se precisar de um pacer novamente, na BR135 ou na Arrowhead, no Kilimanjaro ou no Himalaia, conte comigo.

Seria injusto de minha parte deixar de agradecer às demais pessoas que tornaram essa experiência possível e às pessoas que sempre confiaram em mim e me incentivaram, acreditando mais em mim do que eu mesmo acreditava: Cris, Luís, Caldeirão das Marinas, Aloha Run, Bisan (que só de gritar meu nome na linha de largada e dizer "Você é fod#!" já me deu um pouquinho mais de segurança antes da hora da verdade) e muitas outras pessoas. Quero que saibam que cada um de vocês que ficou sabendo da proposta e disse um "você merece" ou "você vai destruir lá" faz parte da minha história e, por essa razão, sou-lhes eternamente grato.

Caldeirão, tomei a liberdade de me colocar na foto de vocês, pois parte de mim estava lá com vocês também


2 comentários:

Ricardo Nishizaki disse...

Sensacional à enésima potência!!! E ainda bem que eu não fui. Não, não é pelo perrengue. É que meu inglês é bem meia boca mesmo e ia ser uma sacanagem com ele ter um tradutor como eu.

piacere disse...

Que relato emocionante, Gabriel! Guardadas as devidas proporções, deu para sentir a emoção em cada momento da prova. Parabéns para todos!